quinta-feira, 1 de abril de 2010

M223-CONFISSÕES

Nota prévia

-A publicação de um livro de memórias de guerra em passado recente fez-me descobrir um universo de blogues de ex-combatentes.Um companheiro de armas, melhor dizendo de "seringas", pediu-me um testemunho (curto e fiel) sobre a minha experiência como "Enfermeiro de Guerra"para um livro que está a escrever. Confesso que desconhecia a expressão.

No que me diz respeito tinha sido "Enfermeiro".Ponto Final.Afinal também houve "Enfermeiros de Guerra".Aqueles que em operações militares tiveram que tratar de feridos debaixo de fogo, com a vontade de se esconder atrás de uma árvore mas...sem o poder fazer.

Segue-se o meu testemunho de finais de Março de 2010.

JERO

Enfermeiro por “cunha

Na vida civil era funcionário do Tribunal .

Estávamos em 1962 quando fiz a recruta na E.P.C., em Santarém.

A guerra em Angola tinha começado há cerca de um ano.

Um amigo de um amigo, com conhecimentos nos Serviços Mecanográfico fez-me “chegar”, depois da recruta em Cavalaria, ao HMP- Hospital Militar Principal, à Estrela ,em Lisboa .Aqui decorreram cerca de 2 anos da minha vida militar . Fui doente (uma hepatite que fez perder o 2º.ciclo da recruta e ir para casa 6 meses) e, mais tarde, Enfermeiro.

Recuperado da minha enfermidade –à custa dos cuidados dos meus pais – regressei à vida militar. Para minha surpresa – pois na minha “turma” havia enfermeiros “a sério” - fui o primeiro classificado do meu curso(2º.ciclo em 8 de Junho de 1963).

Depois fui ,durante cerca um ano, Enfermeiró-Chefe da Clínica de Dermato-Sifiligrafia , do HMP – como 1º.cabo-miliciano .Mais tarde, já como Furriel Milº. Enfermeiro embarquei para a Guiné em 8 de Maio de 1964.

Confesso que não sabia bem para o que ia.

Pelo sim pelo não tentei melhorar os meus conhecimentos teóricos com uma passagem (voluntária) pelo Hospital de Alcobaça durante os meus 10 dias de férias antes do embarque. E esses conhecimentos ao vivo nas “Urgências” , junto do enfermeiro Torres, profissional com longa tarimba, deram-me alguma confiança para enfrentar o “desconhecido”.

Em finais de Junho de 1964 ,integrado na C.Caç. 675 ,já estava no “mato”, no Norte da Guiné, em Binta, junto ao Rio Cacheu .A fronteira com o Senegal ficava a cerca de 20 kms. do aquartelamento, o que queria dizer, em termos militares, que estávamos numa zona de “corredores” -de entrada e saída - para elementos do PAIGC

O Serviço de Saúde da Companhia (de 170 homens) englobava um Alferes Milº.Médico, um Furriel Milº.Enfermeiro e três 1º.s Cabos-Auxiliares de Enfermagem.

Em saídas para o mato – 2 grupos de combate com 60 homens - seguiam normalmente o Furriel Enfº, e um Cabo Auxiliar de Enfº..

O baptismo de fogo em 4 de Julho de 1964 –Operação Lenquetó - foi determinante para toda a gente. Modéstia à parte fui dos que passei no “exame” ,conforme louvor que tenho na minha caderneta. Refiro este facto pela importância que tem para qualquer militar o encontro com a guerra a sério .Com tiros, explosões, prisioneiros, mortes e feridos. Tivemos isso tudo com emboscadas no regresso ao quartel, que obrigou a apoio aéreo (dois T-6) e evacuações por helicóptero de vários feridos. Um dos feridos graves passou-me pelas mãos ainda no “mato”, emboscados e cercados pelo inimigo. O 1. ° Cabo Marques, ferido a tiro no escroto e num testículo.

Como o tratei? Lembro-me de o ter polvilhado no baixo ventre com sulfamidas e de lhe dado um anti-hemorrágico Depois liguei-lhe os testículos e tentei acalmá-lo .Aguentou-se bem e não me lembra de o ter ouvido gritar. Se ele entrasse em pânico os que estavam à sua volta poderiam ficar “contaminados”e o que seguiria…ninguém podia prever.

Dos oito feridos dessa primeira operação houve um Furriel atirador que nunca mais foi a mesma pessoa. Foi-se abaixo psicologicamente e ,por trágica ironia do destino, veio a morrer em 28 de Dezembro de 1964, quando a viatura em que seguia fez rebentar uma mina. Esteve com baixa durante meses e veio a morrer numa saída de viaturas que iam buscar tropas a meia dúzia de Kms. de Binta, considerada uma deslocação sem perigo!Era o meu melhor amigo.

Depois em dois dias seguidos dois mortos.

Em 28 de Julho – 24 dias depois do baptismo de fogo – numa operação de nossa iniciativa a Cansenhe – o guia Pathé Balde tentou apanhar “à mão” um sentinela inimigo ,mas foi descoberto e atingido a tiro ,no peito, à queima-roupa. Morreu-me nos braços e fiquei banhado em sangue. Pareceu-me então que foi da cabeça aos pés. Foi a pior sensação de sempre como enfermeiro. Não consegui fazer-lhe nada e morreu em 2 ou 3 minutos. Tenho que confessar que além do sentimento de impotência em estancar uma (enorme) hemorragia tive que lidar com o meu (enorme) medo, por estar debaixo de fogo.

Em 29 do mesmo mês nas imediações do quartel vítima de “fogo amigo” tivemos mais um morto. O Soldado Gonçalves foi atingido por um tiro de um companheiro que lhe perfurou o abdómen. A morte aconteceu em poucos minutos. O médico estava presente e não lhe conseguimos dar plasma porque tinha os dois braços destroçados .Um único tiro trespassou-o de lado a lado.

Os tratamentos debaixo de fogo eram extremamente complicados pois alem de se tentar estancar hemorragias por compressão com pensos ou garrote, dava-se uma injecção anti-coagulante, fazia-se a “ficha” se fosse caso de evacuação e tentava-se manter o ferido calmo.”Vais ficar bom, vais ficar bom”…era a fase que se repetia até à exaustão.

Já com cerca de 18 meses de comissão tivemos mais um morto .O soldado Nascimento pisou uma mina A/P (anti-pessoal) e ficou de imediato sem um pé.O tempo estava muito mau e o helicóptero pedido nunca chegou. Foi transportado de Unimog até ao quartel –cerca de 15 kms. - e evacuado a bordo de uma D.O. ainda com vida. Uma série de azares –garrote desapertado e ,a caminho do Hospital ,já em Bissau, mais um atraso devido a avaria da ambulância que o transportava - fez que morresse já com o HM 241 à vista.

Os maus bocados como “enfermeiro de guerra” tiveram no aquartelamento – no apoio a militares e à população – momentos mais tranquilos e gratificantes. As excepções foram algumas epidemias de sarampo que causaram na população mais jovem da tabanca uns 60 mortos.

Entre os militares tivemos muitos casos de paludismo, otites, conjuntivites, infecções bronco pulmonares, perturbações de trânsitos G.I. e escoriações diversas.

Enfermeiro por “cunha” orgulho-me do que fiz, tendo a felicidade de nunca ter sido obrigado a dar um tiro. Uma “especialidade” de luxo em relação aos “homens da G3” …que quer quisessem ou não tiveram muitas vezes que matar para não morrer

.E como é do conhecimento geral não há guerra justas e todos os mortos são sempre demais!

José Eduardo Reis de Oliveira

C.Caç. 675

Binta/Guiné (1964-66)

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