terça-feira, 25 de setembro de 2012

M - 432 O AVÔ DA MATILDE


O avô da Matilde, um vizinho especial
Uma das vantagens de ser avô é poder conhecer através dos nossos netos pessoas que, em circunstâncias normais, nos passariam “ao lado”.
Nas férias do mês de Agosto deste ano, em São Martinho do Porto, a minha neta Mariana começou a brincar com a Matilde e daí até conhecer o seu avô foi um instante.
Nas primeiras palavras que troquei com o Avô da Matilde adivinhei que estava na presença de um ex-combatente, o que se confirmou no momento seguinte quando trocámos nomes, idades e interesses…
Ambos tínhamos 72 anos e, no nosso passado, a Guiné dizia-nos muita coisa.
O Carlos Ferreira quando me disse que tinha 2 comissões na Guiné e tinha sido sargento-chefe paraquedista deixou-me …altamente interessado em cimentar a nossa relação. Ficou logo combinada uma conversa para mais tarde. E, no momento, em que passo ao papel estas linhas já tivemos duas ou três conversas, o que já permite fazer o seu B.I., com os seus dados militares.
Carlos Herculano da Silva Ferreira nasceu em Braga em 16 de Dezembro de 1940. Em 4 Maio de 1961, com quase 20 anos e meio, assentou praça na Escola do BA 3- Tancos. Frequentou o 14º. Curso de paraquedistas e foi “brevetado” em Julho desse ano. 
Nos meses seguintes está envolvido em diversas ”diligências”, sendo colocado em Monsanto “para fazer guarda às antenas”, que tinham um papel importante nas comunicações com as nossas províncias ultramarinas. A guerra já tinha então começado em Angola (Fevereiro de 1961).
Regressa a Tancos em 1962 e em 1963 é mobilizado para a Guiné.
 Viaja de Tancos para Bissau num “Skymaster”, integrado de um contingente de cerca de 50 paraquedistas.
 Chega à Guiné em Junho de 1963 e em meados de Janeiro de 1964 integra as primeiras tropas da “Operação Tridente”, que invadem a Ilha do COMO.

Permanece no Como até ao final operação, que termina em 22 de Março.
 E continua na Guiné até Agosto de 1964.
Era então soldado-paraquedista e chefe de equipa.
Regressa à Metrópole e casa em Janeiro de 1965.Frequenta em Tancos o curso de Sargentos.
Em Setembro de 1967, já então como Furriel, segue para Angola, onde cumpre mais uma comissão, até Novembro de 1969 (1ª.Companhia 121).
Mais um regresso a Tancos onde vai permanecer até inícios do ano de 1972.Durante esse período colabora na instrução de 14 “cursos de combate”. Passam-lhe “pelas mãos” centenas de paraquedistas.
Em Fevereiro de 1972 segue de novo para a Guiné em rendição individual. Foi substituir o Furriel Pires, de Setúbal, morto em combate. Cumpre uma comissão muita dura, que vai prolongar-se até 28 de Março de 1974.
Integra muitas operações, passando por Guidage, integrado no 2º.Pelotão da Companhia 112, onde tiveram 4 mortos.
Regressa à Metrópole a tempo de “apanhar” a Revolução de Abril.
 Estava colocado em Tancos quando, em 25 de Abril, é chamado para integrar um grupo de paraquedistas que ,entre várias operações, têm “responsabilidades” junto da sede da PIDE e na prisão de Caxias.
 Encontra então nessa prisão um alto funcionário da Pide que tinha conhecido em Bissau durante a sua última comissão na Guiné.
Segue depois para a segurança do Aeroporto de Lisboa, onde está em serviço durante algumas semanas.
 Mais um regresso a Tancos e, passado algum tempo, é chamado para próximo do General António Spínola.
 Presta serviço na Presidência da República de 1974 a 1977. Em 1979 faz o Curso de Sargento-Chefe e é colocado em Monsanto. 
Passa à reforma em Fevereiro de 1988.
E,à distância no tempo, o que mais o marcou nas suas 2 comissões na Guiné!?
Em relação à primeira comissão ainda hoje recorda as más condições da sua estadia inicial em Bissau.
 Foram 29 dias a dormir no chão debaixo de um alpendre com telhado de zinco. Foi um período em que quase deu em doido e que lhe valeram 10 dias de prisão… «Um cabo de serviço embirrou comigo, saltou-me a “tampa” e ofendi-lhe a mãe». A “porrada” foi despenalizada mas não deixou de a apanhar. «Depois a vida dá muitas voltas e um dia, durante uma operação no mato, tive que o carregar às costas.»
Depois, em Janeiro de 1964, fez parte do pelotão de paraquedistas que integrou os mais de 1.000 homens que fizeram parte do contingente da Operação Tridente,  para a recuperação da soberania da Ilha do Como , ocupada pelo PAIGC desde 1963.
Foram dias muito duros. À distância no tempo recorda um momento para o qual ainda hoje – tantos anos passados -  ainda não encontra uma “boa explicação”.
Já estava no Como há 2 ou 3 dias quando integrou uma “coluna” para entrar no “mato”.Com a floresta à vista  - deslocavam-se “em bicha de pirilau em cima do “separador” da bolanha - e as uns 30 metros da mata ouviu um barulho suspeito. «Era o 4º. da fila e vi um “vigia” deles saltar de uma árvore. Logo a seguir aparece um tipo, fardado de caqui, que nos faz um sinal de “alto”.»
Logo após o salto do“vigia” ficámos no chão e pedimos pela rádio apoio de fogo de morteiro. O inimigo desapareceu e as nossas tropas recuaram.
Que quis dizer aquele gesto de “alto” !?
 Não quiseram fazer fogo, não queriam guerra ? Tinham a “surpresa” do lado deles e não a aproveitaram.
Ainda hoje, 48 anos passados, a cena não se apagou da “sua cabeça” e o enigma mantém-se.
Em relação à “Operação Tridente” não se pronuncia pois a sua crónica está contada e ao tempo - não teve tempo nem espaço, nem informação – que valha a pena acrescentar mais alguma coisa ao que está escrito e …já passou à história.
Quanto à segunda comissão ,que como já foi referido cumpriu em rendição individual, prolongou-se de Fevereiro de 1972 até 28 de Março de 1974.
Das muitas operações em que esteve envolvido recorda especialmente a invasão do Cantanhez.
«A minha Companhia  estava em Teixeira Pinto e veio para Bissau para preparar a operação. Na data prevista fomos hélio-transportados até à orla da Mata do Cantanhez.
 Fui o primeiro militar do primeiro “heli” a saltar.
Era então 2º. Sargento e o meu chefe directo era  o Alferes Silva, que é hoje Coronel. 
A nossa missão consistia em limpar a área para se montar um aquartelamento.
 Estivemos vários dias na zona e fomos atacados durante uma noite. Ao fim de 3 dias o “Caco Baldé” aparece lá e vai falar com o Comandante de Companhia, o Capitão Augusto Martins, que chegou a General.»
Mandaram-se chamar ao Comando porque o General Spínola queria conhecer a mata. «Foi comigo e fomos sempre a falar. No final da visita deu-me os seus parabéns e disse-me que tinha gostado de me conhecer.»
«Foi para mim um dia e uma ocasião muito especial. Que não mais esqueci.»
 Ficámos um mês no Cantanhez.
Tempos depois, numa operação na zona de Babadinca, fomos sobrevoados por um helicóptero.
 Para meu espanto o “héli” baixou e veio aterrar perto dos meus homens. 
O “Caco” vinha a bordo e ,quando me aproximei, perguntou-me se estava tudo bem e se era preciso alguma coisa. Reagi de imediato e pedi-lhe: «Meu General vá-se embora, que me dá cabo da operação.»
- «Se precisares de alguma coisa chama». Acenou-me com o bengali e o “héli”afastou-se.
«Nunca mais esqueci o momento».
«Deixo para o fim a recordação de uma ocasião muito dolorosa e marcante.Um dos meus homens – o 1º.Cabo Melo – ganhou o Prémio Governador da Guiné e teve direito a um período de férias no Continente. Podia ter vindo para Bissau para apanhar o avião para Lisboa mas fez questão de entrar numa operação comigo, porque sabia que fazia falta. Nessa operação foi morto em combate. Em Junho de 1973.
Foi o maior desgosto da minha vida de militar. Andei 8 dias bêbado.»

À distância no tempo…o Avô da Matilde emociona-se e cala-se.
Mais tarde diz-me que lhe fez bem falar.
Daqui para a frente sempre que for a São Martinho do Porto vou tocar à campainha do apartamento do Sargento-Chefe Carlos Ferreira.
 Um vizinho especial.
JERO







segunda-feira, 17 de setembro de 2012

M - 431 ALMA ATÉ ALMEIDA...


De vez em quando…uma viagem ao passado

A primeira paragem foi em Tondela. 
O Belmiro Tavares e a sua mulher, Luísa, tinham partido de Lisboa e deram-me boleia a partir de Alcobaça.
 Para ali chegar já tínhamos andado uns bons quilómetros. Em números redondos cerca de 300.
Entrámos no cemitério e encontrámos a campa do 1º.Cabo Enfermeiro  António da Silva Martins sem dificuldade. 
O Tavares já cá tinha estado anteriormente.
 Eu vi pela primeira vez a sepultura do “Rato”, alcunha por que ficara conhecido por toda sua Companhia – a nossa CCaç.675. 
Em 1970 não tinha resistido a um acidente de motorizada numas fatídicas férias que passou na sua terra natal. Contava 28 anos.
 Anteriormente tinha vivido – ou sobrevivido - em Lisboa, após o regresso da Guiné .
 Na sua humilde sepultura estavam também a mãe e uma irmã (Maria Manuela Silva Martins Neves Antunes – 1946/1998), conforme informação do coveiro, que nos acompanhou na visita. O pai também já tinha falecido e o nosso solícito informador nada mais nos conseguiu dizer sobre familiares do Martins, que estivessem vivos.
Depois do nosso regresso da Guiné em Maio de 1966 os primeiros reencontros entre camaradas da guerra haviam acontecido por causa de casamentos, que aconteceram quase por todo o País. Depois do nosso regresso para a vida o “Rato” fora o primeiro a encontrar a morte.
 Todas estas recordações me passaram pela cabeça enquanto colocávamos a lápide na campa nº. 31 do nosso camarada: PRESENTE /António Martins/ 1º.Cabo Enfermeiro/ Os Companheiros.
Abandonámos o cemitério.
 Antes de sair da cidade visitámos ainda a Igreja Matriz de Tondela.
Continuava a “ver” o “Rato” com o seu sorriso inconfundível, que fazia parte da sua imagem de marca.
 Irreverente, malandro, irresistível no quartel e na tabanca com as “bajudas”, mas valente e desenrascado no “mato”.
 Voltara da guerra sem um arranhão e, dois anos depois, morreu num desastre de viação. Num tempo em que não havia telemóveis a notícia da sua morte chegou-me algo atrasada. 
Felizmente que alguns meses antes tinha-o conseguido levar a casa dos meus pais, em Alcobaça, onde tinha sido tratado como um filho. Esse tempo feliz ficou-me gravado na alma.
Seguimos depois para Freinedo, junto a Vilar Formoso, onde nos deslocámos para honrar a memória de outro camarada: - António de Jesus de Encarnação, que fora 1º.Cabo rádio telegrafista.
Cabe aqui fazer um pequeno parêntesis para recordar que durante a permanência da Guiné (1964-66) tivemos 3 mortos em combate:
 - Furriel Miliciano Mesquita 
-  Soldado Gonçalves e
-  Soldado Nascimento.

 Depois, pela ordem natural da vida, que envolve a morte, “deixaram” a família da CCaç. 675 mais 4 dezenas de camaradas.

 Graças à iniciativa do ex-Alferes Miliciano Belmiro Tavares temos, desde há uns anos a esta parte, vindo a colocar lápides nas suas sepulturas com a mensagem de PRESENTE, que faz jus ao lema da Companhia, que no seu emblema referia “Nunca Cederá”.
Na visita à sepultura do Encarnação, que faleceu em 2008 com 66 anos de idade, tivemos a companhia de uma sua filha, que também reside em Freinedo. Ficámos a saber que o nosso antigo camarada foi emigrante em França, durante grande parte da sua vida.
No dia seguinte cumprimos um “programa” diferente, dedicado aos “vivos”. Fomos ao encontro de 2 camaradas que residem perto de Almeida, uma terra com história e com alma…até Almeida(1).
Como o Belmiro Tavares gosta de dizer fizemos nessa tarde um “mini-convívio” da “675”.
Reencontrámos o António Alberto Nunes Espinha, por alcunha o ”Cara Rota”, e o Silvestre Fernando Verges Flor, que passou à história como o “Aguardente”. Vá lá saber-se porquê !
São agora “rapazes” com 70 anos e a vida marcou-os de maneira diferente. Curiosamente o “Aguardente” afastou-se da dita e passa a imagem de um homem tranquilo, com “as coisas” todas bem arrumadas. Em relação à sua idade actual passou mais tempo em França que em Portugal. Está bem na vida. O “Cara Rota” vê-se que é um homem desenrascado, que conhece bem o solo que pisa e que vive o seu dia …”à sua maneira”. De manhã bebe uns “copos” com uns amigos. À tarde faz “alguma coisa” e, logo que está livre, joga à sueca com uns parceiros habituais. E o tempo vai-se passando.

Espinha, Tavares, Luísa, Flor e JERO
Prometeram comparecer no próximo convívio da CCaç.675, desde sempre marcado para o 1º domingo do mês de Maio de cada ano.
 E já passaram 46 anos desde que o navio “UÍGE” nos transportou de Bissau para Lisboa, onde aportámos em Alcântara em 3 de Maio de 1966.
Para uma próxima “agenda”, a cumprir ainda este ano, temos para entregar as placas do Alferes Miliciano Artur Mendonça(Felgueiras) e do 1º. Cabo Cozinheiro Rogério Romão (Sabrosa/Vila Real).
 O Belmiro Tavares e sua mulher ficaram mais uns dias no “Retiro dos Caetanos”, em Souto Chão (Rocas do Vouga), que foi o nosso” quartel-general”. Grato pela hospitalidade regressei a casa pelos “meus meios” e com a ajuda da Rodoviária Nacional.
 Desta jornada de saudade a recordação mais viva, mais marcante foi a visita à campa do “Rato e ter visto a sua fotografia sumida, esfumada, apagada pelo tempo.
 Encaixada na sua lápide do cemitério de Pinhel.
Que saudades eu tenho do “puto” irreverente da Guiné dos longínquos anos de 1964-66 em Binta,
 na Vila Tomé Pinto !
Desse tempo que não volta e do tempo que corre e…não se detém .

Quanto mais tempo andaremos nesta saga ???
Num dia recordámos os mortos. No dia seguinte confraternizámos com os vivos !!!
Todos nós sabemos que só uma coisa é certa…
 Mas …a nossa amizade NUNCA CEDERÁ.
JERO


(1)- Evoca este grito –“ alma até Almeida” - a importância que teve Almeida, fortaleza que só passou a integrar definitivamente território português no século XIII, com a celebração do Tratado de Alcanizes, na defesa de toda a Beira, face às muitas incursões castelhanas, e a valentia com que os seus guardiões disso fizeram um ponto de honra.