segunda-feira, 30 de julho de 2012

M - 429 MEMÓRIAS DA GUERRA


Corpo a corpo

 A guerra acabou há décadas.
Reporto-me à Guerra do Ultramar ou Guerra Colonial, que decorreu entre 1961 e 1974.
Para os mais “antigos” – que é o meu caso (1964-66) – já lá vai quase meio século.
Apesar de todo esse tempo decorrido ainda há histórias (ou memórias)  que ainda não foram contadas. E –arrisco dizê-lo – haverá histórias(ou memórias) que nunca serão contadas. 
Estou a pensar, obviamente , pela minha cabeça mas acredito que não  estarei só nessas recordações complicadas que desde então se agarraram à nossa pele (ou à nossa alma) e permanecem…
Vou hoje fazer a catarse de uma dessas.
 Bem complicada e que não é fácil de passar ao papel. Mas, já que comecei, vamos aos factos.
Quem esteve na guerra teve situações em que era matar ou morrer. Porque guerra não é um jogo de xadrez, que permite “xeque-mate” . 
Na guerra há sangue, há gritos, há medo. E ficam fantasmas …e memórias dolorosas.
 No teatro de guerra onde estive – Guiné – onde enfrentámos uma guerra de emboscadas, de “mata e foge” …raramente víamos quem nos atacava.
 A guerrilha tinha as suas “regras” e raramente encarávamos – olhos nos olhos – quem disparava contra nós.
 Uma luta corpo a corpo era quase impensável mas …aconteceu por onde andei.
Numa emboscada montada pela nossa tropa o sangue frio do Alferes ,que comandou a operação, deixou que o grupo inimigo se aproximasse a pequena distância para então, e após a sua ordem de “fogo” ,o ter desbaratado completamente.

Houve tiros a poucos metros do IN (abreviatura de “inimigo”) e chegou-se a combater corpo o corpo.
 O soldado Cardoso(nome fictício), por se ter encravado a sua arma,  matou à coronhada um dos terroristas e retirou-lhe a sua P.M.(pistola metralhadora).
 Foram abatidos uns 5 “ turras” e capturadas, entre diverso armamento, duas pistolas metralhadores Thompson, daquelas que conhecíamos dos filmes americanos de gangsteres.
Tempos depois e passada a euforia do momento começaram a constar alguns pormenores “falados à boca pequena”… no “universo” muito limitado do quartel.
 O Cardoso não tinha disparado a sua arma porque não quisera e matou o inimigo à coronhada porque era um “sanguinário”.
Sendo um trabalhador infatigável no quartel e um aguerrido combatente no mato era, no entanto, um homem estranho. O Cardoso – no quartel ou no mato –  tratava tudo “à bruta”.
 É caso para dizer que ,felizmente, estava do nosso lado…
E há também que referir que foi distinguido e condecorado pela sua contribuição no sucesso militar da tal emboscada que abateu inimigos e permitiu capturar armas.
Em circunstâncias que já não consigo recordar ao pormenor fomos protagonistas de uma cena caricata, com um final “animalesco”.
 Quando progredíamos numa zona de floresta cruzámos com uma cabra do mato e suas crias. Não me recordo se houve ou não tiros. Sei que momentos depois deste encontro inesperado me vi nos braços com uma assustada cabrinha do mato. Tentei salvar o “bicho” e levá-lo para o quartel mas não consegui acalmá-lo.
A cabrinha começou a balir e comecei a não ter mãos para levar a bolsa de enfermeiro, a arma e o pequeno mas irrequieto animal.
 O Cardoso aproximou-se e disse-me:- Meu Furriel, dê cá a cabra que eu trato dela.
Assim fiz convencido que o Cardoso, com a sua experiência do mundo rural donde era proveniente, iria acalmar o animal e levá-lo para o quartel para o criarmos.  
Estava redondamente enganado.
 O Cardoso agarrou o animal com as duas mãos e mandou-o violentamente para o chão.
 Ainda me lembro do berro da cabrinha e dos seus olhos saltarem da cabeça. 
O que disse já não sei, mas sei que não mais esqueci esta cena de bestialidade. O Cardoso seguiu na patrulha como se nada se tivesse passado.
No nosso dia a dia no quartel era raro o dia em que não houvesse, à tarde, um jogo de futebol.
 Mantinha-nos ocupados e era bom para a forma física. Havia os predestinados e os outros …
O Cardoso era destes últimos. Era esforçado mas um “nabo” a jogar a bola. Eu jogava a defesa-central, e, modéstia à parte, “metia no bolso” o Cardoso sem dificuldades de maior. Reconheço que não era “meigo” a defender e numa jogada em que o Cardoso me passou por perto “dei-lhe com força”. E não passou… “nem a bola nem o homem”.
 O Cardoso cresceu para mim e, de cabeça perdida, ameaçou-me de morte. Foi um momento tenso que alguns camaradas ajudaram a ultrapassar. 
O Cardoso abandonou o jogo a coxear e a remoer ameaças.
Ainda faltavam uns meses para o final da comissão e não esqueci o ódio do Cardoso nesse momento do jogo de futebol em que entrei às suas pernas… “a matar”.
Dali para a frente em todas as operações em que  participava e onde ia o Cardoso integrado no seu pelotão eu tinha uma preocupação acrescida. “Um olho no burro e outro no cigano”.
 Porque já então se ouviam falar de histórias em que um “tiro perdido” calhava a um superior ...
Refiro-me a patentes, está claro. 
Nunca confessei a ninguém esta minha preocupação “particular”.
A comissão acabou e…regressámos os dois.
 O Cardoso(nome fictício) só muitos anos depois apareceu num convívio da Companhia. Apareceu e fiquei com a sensação que…ficou isolado!
O tempo não parou. Passaram todos estes anos ...
Ainda não esqueci a expressão e as palavras de ódio do Cardoso, quando levou a minha canelada no “tal” jogo de futebol: “Eu mato-o, meu Furriel”.
Esta é a minha verdade e sei que “não sou o dono da verdade”.
Posso estar a ser injusto.
 Mas, ia jurar, que nesse dia longínquo, na Guiné, joguei a bola com um assassino.
“Está contada” uma das histórias proibidas…
Há mais uma ou duas mas vão continuar em “arquivo morto”!
Até um dia…ou talvez não!
JERO


quarta-feira, 18 de julho de 2012

M - 428 E QUANDO A RAINHA DE INGLATERRA VEIO A ALCOBAÇA ?


MEMÓRIAS NÃO TÊM FIM
Mais uma evocação com mais de meio século, que vai trazer algumas recordações aos maiores de setenta.
Tem a ver com a visita a Portugal da Rainha Isabel II de Inglaterra nos inícios do ano de 1957, quando era Presidente da República o General Craveiro Lopes.
Ainda hoje se diz nos meios diplomáticos portugueses que foi "a visita do século".
Tirou-se o bergantim real do Museu da Marinha, ofereceram-se presentes caríssimos à família real, requisitou-se a baixela Germain, fez-se um desfile de barcos no Tejo, cortejo pela cidade com coche do século XVIII, arranjos no Palácio de Queluz e Mosteiro da Alcobaça.
A Rainha, então com 30 anos, trazia consigo os olhos do mundo, imprensa cor-de-rosa e não só, que designou a sua estada oficial entre 18 e 21 de Fevereiro de 1957 no Portugal fascista como "uma segunda lua- -de-mel".
O marido, duque de Edimburgo, vinha juntar-se-lhe em Portugal depois de uma viagem de muitos meses pela Commonwealth .
Por onde andou (Belém, Alcobaça, Nazaré, Mosteiro da Batalha), a soberana foi aclamada por milhares de pessoas.
Este apontamento diz basicamente respeito à visita de Isabel de Inglaterra a Alcobaça e aos trabalhos feitos apressadamente nos meses que antecederam Fevereiro de 1957.
O Engº. José Costa e Sousa era ao tempo, Chefe dos Serviços Técnicos da Câmara Municipal e é “fonte” privilegiada das linhas que se seguem:«…as obras de desaterro foram alargadas para além do inicialmente previsto… O pessoal municipal trabalhava à luz dos faróis de camionetas…para tudo estar pronto a tempo e horas. Mas “o vendaval num copo de água” – expressão de Costa e Sousa” -  chegou com a construção das instalações sanitárias para uso dos Reis de Inglaterra.
Havia três entidades responsáveis pelas obras : SNI (Secretariado Nacional de Informação), MOP (Ministério das Obras Públicas) e MNE (Ministério dos Negócios Estrangeiros). O responsável do SNI queria que fossem utilizadas louças cor de rosa; o da MPO defendia o azul enquanto que o do MNE se inclinava para o branco.
Como quem estava mais tempo no local das obras era o técnico da Câmara de Alcobaça, Engº. Costa e Sousa, todos lhe diziam nas costas do outro, para aplicar a louça da cor que defendiam. O assunto assumiu tais proporções que o encarregado do SNI ameaçou fazer queixa ao Dr.Salazar, se outra fosse a cor da louça, que não o rosa.

Mas que foi a visita do século…foi.
 Os 80 contos foram mais tarde (realmente) rentabilizados…
JERO

segunda-feira, 9 de julho de 2012

M - 427 MEMÓRIAS DA MEIA IDADE


ANTI-CONSTITUIONAL
A recente decisão do Tribunal Constitucional ,que tanta tinta fez (e fará) correr ainda, fez-me lembrar uma história de vida, que me aconteceu já lá vão uns bons anos.
Só para situar melhor o momento actual, recordo que, em passado recente, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade da suspensão do pagamento dos subsídios de férias ou de Natal a funcionários públicos ou aposentados.
 O TC considerou que o corte de subsídios inscrito no Orçamento do Estado para 2012 "não se faz de igual forma entre todos os cidadãos na proporção das suas capacidades financeiras", tendo assim sido violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
É aqui que “eu vou saltar no tempo” e recuar a meados  dos anos 90 para contar a tal história que a recente situação do Tribunal Constitucional fez “despertar” no meu “arquivo de memórias”.
Por casamento ganhei direito a ter férias “institucionais” na praia de São Martinho do Porto, no Litoral Oeste. A minha mulher herdou de uma sua avó uma casa, onde aliás tinha sido criada até aos 12 anos, e as férias de Verão passaram a ser nesse prédio, situada a meia centena de metros do longo areal da “Concha Azul”. Por ter relações pessoais com uma das senhoras que alugava barracas na zona mais central da praia não foi difícil à minha mulher arranjar uma “barraca” na 8º.fila,logo após a entrada no areal.
Começámos a ficar por ali desde 1970 e na nossa fila tínhamos como vizinhos “certos” e habituais desde marqueses, a grandes capitalistas ligados a empresas de Camionagem, engenheiros, doutores  e…a família Vale de Azevedo.
Era notório que “aceitavam” a nossa presença com alguma condescendência, que só se “atenuou” quando a minha mulher começou a levar apetitosos lanches para os nossos filhos, que também chegavam para “reforçar a dieta” dos filhos das “elites”, que brincavam na nossa fila. A 8ª. dos paus vermelhos, no zona mais central da praia.
Também quando perceberam que eu era “comercial” de uma Fábrica de Porcelanas da região e que poderia “tirar” uns serviços de chá ou café com 25% desconto, a nossa popularidade junto dos vizinhos da “alta finança” cresceu mais um pouco.
 Os anos foram passando e o João Vale Azevedo, que viria a ser Presidente do Sport Lisboa e Benfica, conversava cordial e simpaticamente comigo e “ajudava-me” a ler os jornais que eu comprava. «O vizinho empreste-me aí “A Bola”», acontecia com freequência.
 Benfiquista assumido já nessa altura  fazia grandes discursos sobre o “Benfica à Benfica “ e “um escudo é um escudo”.
Era advogado e lembro-me que, durante algum tempo       ( entre 1981 e 1983), foi assessor jurídico do primeiro-ministro de Portugal Francisco Pinto Balsemão. .
 Foi das primeiras pessoas a ter um telemóvel na nossa fila de barracas e quando atendia – ou fazia uma chamada – saía da barraca para “se fazer ouvir” e ser visto.
 Dava de facto nas vistas mas era sem dúvida uma pessoa simpática, que também me dava “a honra” de jogar a bola com ele e seus amigos na praia. Por acaso a bola era minha mas era-me solicitada com a maior delicadeza e lá íamos jogar quando a maré estava vazia…e o cabo-do-mar estava longe. Porque, tal como hoje, era proibido jogar a bola na praia.
 Um dia o jogo estava tão animado – jogávamos normalmente uns 7 contra 7 – que fomos “apanhados” em flagrante pelo cabo-do-mar. Que parou o jogo e apreendeu a bola, porque era proibido jogar na praia.
 O que ele foi fazer !!! O Dr.Vale Azevedo interpelou-o e, em alta voz, disse-lhe que o que ele estava a fazer era “anti-constitucional”.
 Não podia aprender a bola! E foi tão peremptório na sua argumentação que o cabo-do-mar devolveu a bola e, com “o rabo entre as pernas” – salvo seja - afastou-se.
Nunca mais esqueci este incidente e a grande ”lata” do Dr.João Vale Azevedo.
Julgo que nos anos seguintes a esta cena foi Presidente do Benfica- de Outubro de 1997 a Novembro de 2000 - e daí para a frente…a sua história é conhecida.
 Ainda me lembra de o ver na baía de São Martinho do Porto com o seu iate “Lucky me”…

Até desaparecer por completo, sendo de vez quando notícia do jornais, como aconteceu recentemente devido a alguns problemas em Londres, onde tem vivido desde 2006.
Continuamos vizinhos de barraca de seus pais, irmã, cunhado e sobrinhos que são, aliás, pessoas muito simpáticas.
Ainda vi durante alguns o tal cabo-do-mar que nos tinha confiscado a “minha” bola e que há muito deve estar reformado.
 Com um bocado de jeito e, eventualmente, como pensionista, também lhe calhou o “corte” anti-constitucional dos subsídios de férias e de Natal.
Cá se fazem e …cá se pagam.
JERO


quinta-feira, 5 de julho de 2012

M - 426 CRÓNICA DE UM CONGRESSO


A ORDEM DE CISTER-CRÓNICA DE UM CONGRESSO

«EGO ALFONSUS DEI MISERICORDIA PORTUGALENSIUM REX, UNA CUM UXORE MEA D.MAHALDA REGNI MEI CONFORTE TESTAMENTUM E CAUTUN FACIMUS UOBIS D.ERNADO CLARAVALENSLS ALCOBACHA NUNCUPATUR»

Os Reis assinaram de “propriis manibus” e o Mosteiro instalou-se no lugar de Alcobaça dezenas de anos depois da sua instalação provisória em Chiqueda, onde se agricultou a primeira granja e se construiu uma robusta ponte de três arcos, por onde D.João I passará em Agosto de 1385 para vir instalar-se, por alguns dias, no Mosteiro dirigido pelo Abade d’Ornelas.

Muitos séculos depois centena e meia de congressistas reuniram-se no Capítulo de Alcobaça para ouvir o Abade de S.Isidro de Bueñas D.Juan Martin Hernandez OCSO falar na Ordem de Cister, em particular do seu presente e futuro.O Abade de Poblet D.Josep Alegre OCIST, o Bispo D.Carlos Azevedo e o Prof. José Mattoso enviaram mensagens.
A 15 e 16, uma sexta e um sábado de Junho de 212 oitenta professores, alguns deles religiosos, e outros apaixonados pela Ordem fundada por S. Roberto na floresta de Citeaux, na Bolonha, em 1093, reuniram-se num Capítulo imaginário nas preciosas instalações da Escola Secundária de D.Inês de Castro.
Assuntos espirituais, económicos, históricos, artísticos e da lavoura da secular Ordem foram aprofundados e discutidos. A Livraria de Alcobaça e seus incunábulos viram as suas iluminuras interpretadas, os olivais e os vinhedos dos Coutos analisados. 

O grande edifício desvendou alguns segredos. As representações pictóricas da Padroeira da Ordem festejadas, explicadas. As encomendas das baixelas cerâmicas analisadas. O canto gregoriano, a liturgia, o quotidiano do cenóbio, o “ora et labora” foram outros temas tratados com uma qualidade impar.
A arqueologia deu respostas às propostas de futuro, o Museu, o Centro de Estudos, o Hotel de Charme surgiram num contexto de conservação integrada e de salvaguarda auto sustentada.
Não fora a Câmara Municipal de Alcobaça não haveria Congresso. Não fora a JORLIS não sairiam as actas que tão uteis serão no futuro. Não fora o Mosteiro e não teríamos uma criteriosa exposição bibliográfica, com a descoberta simultânea da arte das reservas do Mosteiro e da modernidade do Irmão Luís de Oseira.
Na”loja” dos livros várias obras foram adquiridas por entre aromáticas maçãs de Alcobaça.No “Refeitório da Escola” preparado para os congressistas o vinho de Monte Capucho, a memória da Granja de Chiqueda com as suas cepas viradas ao sol nascente de onde vem a luz e a vida.
Foi uma operação trabalhosa, um formidável trabalho de equipa. A solidariedade passou muito além do labor das Comissões Executiva e Científica, chegou aos funcionários da Câmara, da Escola e do Mosteiro. Os especialistas trabalharam em condições óptimas por temos uma Escola Pública moderna com um grupo directivo inteligente e ágil, com professores na sua maioria inteiramente dedicados, com funcionários apaixonados e alunos orgulhosos.
O Município e o seu Presidente compreenderam a importância desta realização em Alcobaça, trazer aqui Abades Cistercienses, outros religiosos da Ordem, tal como vieram de outras professores universitários e técnicos, dedicados à história da Ordem de S.Roberto, S.Harding e S.Bernardo foi doce tarefa.
As actas serão o culminar desta festa científica, deste reencontro de Cister com o seu grande Mosteiro.
No dia 17 António Maduro e Saúl Gomes, doutores coimbrões, guiaram uma viagem pelos Coutos, mostraram a sustentação agro-económica e o Mosteiro Feminino de Cós.Visitou-se a Matriz de Évora e os portais e pelourinhos de algumas vilas de D.Manuel. Uma verdadeira festa sobre a história, com as suas maleitas e as alegrias também.
Ao Amigos do Mosteiro de Alcobaça editaram um livro sobre o espírito, a pedra e a terra de Cister Alcobacense, a Associação Portuguesa de Cister, o ICOMOS coadjuvaram para erguer o projecto. A APC promoveu uma tertúlia, onde se bebeu cerveja de Cister. O ICOMOS acarinhou o Património da Humanidade. O Mosteiro que se ergueu junto ao Castelo do lugar de Alcobaça desde 1178.
Rui Rasquilho

Nota: O Director Geral do Património Cultural prometeu para breve a abertura do concurso para o Hotel de Charme.Paulo Inácio aguarda para ver.Nós na AMA e na ADEPA também.


quarta-feira, 4 de julho de 2012

M - 425 MEMÓRIAS DA ADOLESCÊNCIA


A mulher que se “matou” à minha frente…
Teria na altura 15 ou 16 anos. 
Frequentava o antigo 5º.ano do Liceu e voltava para casa depois de um dia rotineiro.
 Até a Professora de Inglês nos tinha ameaçado com o “8” habitual – as notas eram então de 0 a 20 – porque não estudávamos nada, porque eras uns cábulas, etc, etc. 
Quando cheguei à ponte junto da casa do Dr.Neves vi muita gente a correr e a gritar. Apressei o passo e quando me foi possível ver alguma coisa tive a surpresa de ver uma jovem mulher que tinha saltado da ponte para o rio.
 Tinha água pela cintura mas caminhava em direcção à represa, para águas mais profundas.Adivinhava-se que era um acto de desespero e que a mulher se queria afogar!
Os minutos seguintes ficaram-me gravados na memória. Até hoje. E já passaram mais de 50 anos.
Toda a gente gritava. Toda a gente apontava para a mulher e esperava que o “outro” fizesse alguma coisa…Eu, miúdo do 5º.ano., perguntava-me porque ninguém fazia nada e…ia arranjando argumentos para não me sentir “culpado”. Afinal estavam ali ao meu lado homens feitos…Era preciso dar um salto de uns 2 a 3 metros de altura para o rio e impedir que a mulher se afogasse. Lentamente a mulher, agora já debaixo da ponte, caminhava para a morte. Mais gritos, mais braços no ar e …ninguém fazia nada. A mulher parou. Só tinha a cabeça fora de água. Parecia não olhar para ninguém.
 E de repente …alguma coisa mudou. Os gritos dirigiam-se agora para um homem que ,vindo de um armazém próximo, com escadas que davam para o rio já estava dentro de água. Os gritos agora eram de entusiasmo e de ânimo. “Força pá. Agarra-a, agarra-a”. O homem, seguindo encostado à margem, aproximou-se rapidamente da mulher e conseguiu agarrá-la, retirando-a da zona mais profunda. Foi um momento emocionante com os “mirones” a aplaudir.
 De um minuto para o outro toda a gente arranjou coragem para dizer que estava mesmo à beira de saltar e que ninguém deixaria a jovem mulher morrer…
 Também fiz qualquer “negócio” comigo mesmo …para me libertar da sensação de culpa.
Falou-se depois que o acto de desespero esteve “ligado” a um desgosto de amor.
 A jovem mulher nunca mais foi a mesma.
 Ficou solteira para a toda a vida e vive sozinha. 
Continuo a vê-la na sua rua, parecendo quase sempre alheada do mundo e a falar sozinha.
 Uma irmã e o cunhado garantem-lhe o sustento.
Vejo-a muitas vezes a dar de comer aos pombos.
 Recentemente tirei-lhe uma fotografia. Nem me viu. Ainda é uma mulher bonita.Com os cabelos completamente brancos. Usa sempre um chapéu.
 Não fala, não vive. 
Continua a olhar para longe.
 Da mesma maneira que a recordo no dia em que saltou para o rio.
Não mais esquecerei aqueles minutos.
 Senti necessidade de escrever esta história de vida. Para lhe pedir desculpa…
 Julgo que o empregado dos armazéns junto ao rio que a salvou…já partiu. Também lhe quero agradecer.
Agarrou-a nesse dia longínquo.
 E já passaram mais de 50 anos. 
Mas a mulher sem o “seu” amor… não mais quis viver.

Amanhã estará no sítio do costume a dar de comer aos pombos.
Bem me apetecia passar por perto e dizer-lhe alguma coisa.
Mas o quê? 
Há-de ocorrer qualquer coisa...
Até sempre!
JERO