sábado, 12 de abril de 2014

M - 471 AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ !

As voltas que a vida dá !

Quando saímos de Binta, no norte da Guiné, tivemos direito a lágrimas de saudade dos que ficaram.
Tínhamos sido importantes para eles e para nós próprios .

O último ano em Binta aconteceu
 n’outro mundo! Quase que tínhamos esquecido o mundo para onde regressámos em Maio de 1966!
Quando regressámos à Metrópole e à vida civil
 chocámos com um mundo onde a nossa importância anterior rapidamente se esbateu.
Já estava
 tudo feito - éramos apenas um pequeno parafuso de uma máquina gigantesca que girava sem cessar – e à nossa volta já não tínhamos a malta da Companhia. Todos tinham partido para as suas vidas. Para longe.
Nos primeiros meses corríamos sempre há chamada de cada camarada que se casava. Viajávamos de norte a sul do País para nos voltarmos a encontrar.
Naquelas horas que estávamos juntos voltávamos lá! E o
 nosso Capitão normalmente estava por perto!
Depois tínhamos que voltar ao
 mundo dito normal , onde ninguém falava a nossa linguagem!
Que tempos amargos. Trabalho. Mais trabalho. E – falo por mim - solidão.
E os anos iam passando. Uma vez por ano a malta da Companhia reunia para um convívio, onde começámos a levar os filhos, que entretanto tinham chegado às nossas vidas. As estórias do nosso tempo da guerra voltavam inevitavelmente nesses dias especiais com velhas discussões em relação à emboscada de Caurbá, ou de Cansenhe, no caminho de Farim, ou perto de Guidage… E muitos anos depois havia camaradas que chegavam à conclusão que se tinham abrigado do fogo inimigo “à frente” de uma árvore e “não atrás”, como conviria…
Todos esses convívios anuais começavam com uma missa onde eram recordados os camaradas que “tinham ficado” na Guiné e os que entretanto, pela lei da vida, nos tinham já deixado. Dos 170 que tinham pertencido inicialmente à CCaç. 675 já não estavam entre nós cerca de quarenta!
E quando os “cabelos brancos” chegaram uma “comissão de camaradas de boa vontade” passou a reunir-se uma ou duas vezes por ano para visitar as campas dos camaradas que já tinham partido para honrar a sua memória e deixar na “última morada” uma lápide com o seu nome e com o emblema da Companhia.
O tempo passa depressa, muito depressa, e, felizmente, que a “idade do condor” trás também algumas coisas boas. Um camarada e sua dama chegam às Bodas de Ouro” e convidam a malta da Companhia para estar presente.
 E vamos à Missa de acção de 
graças e ao Copo de Água para aconchegar os estômagos e a “memória do casamento”. 
Tudo a rigor e com uma programa festivo que nos dá a conhecer uma família numerosa que canta e dança em volta dos “noivos”, rodeados de filhos, genros, netos e netas. 
Um autêntico espanto.
Estávamos a saborear o prato de peixe – bacalhau com broa – quando um grito numa mesa próxima me fez quase saltar da cadeira. Porque o grito de aflição tinha o meu nome: “Oliveira”.Dirige-me à mesa onde estava o Rodrigues, correspondendo ao apelo da mulher do Cravino, que via ainda em mim o enfermeiro que eu tinha sido na vida militar cinquenta anos atrás.
O Rodrigues, que eu sabia, que estava a meio de um tratamento
oncológico, estava muito pálido, espumava pela boca e tinha cabeça pendida para o peito. Não dava acordo de si e quando lhe peguei no braço para “ver” as pulsações não lhe encontrei o pulso. Olhei de novo para a cara e o seu aspecto era assustador. A fazer pensar o pior. 

Felizmente aproximou-se um jovem, que era enfermeiro a sério e “dentro do prazo”, que deu uma ajuda. Dois ou três minutos depois o Rodrigues voltou a si.

A côr voltou-lhe a face e falou com a mulher e comigo sem se lembrar que tinha estado alguns minutos em colapso. Na fase mais preocupante tínhamos pedido que se chamasse o INEM. O Rodrigues recusou de imediato a ideia e como parecia estar de facto melhor anulou-se a “urgência”.
 Passado mais uns minutos levantou-se e dirigiu-se para fora do restaurante, pedindo para ir para o seu carro e voltar para casa. O filho estava por perto e sentou-se ao volante. Momentos antes tinha sabido que o Sporting do meu amigo Rodrigues estava a ganhar por 2 a zero ao Paços de Ferreira. Nunca antes que me lembre – sou benfiquista desde os bancos da escola – tive tanta satisfação em dizer a um camarada “em azar” que os “lagartos estavam a ganhar ao intervalo. E o seu sorriso de satisfação valeu a pena e tornou mais leve o “meu sacrifício”…
Entre o grito da mulher do Cravino e a entrada do Rodrigues no seu carro para regressar a casa com a sua mulher e filho, decorreu cerca de meia hora. O meu prato de bacalhau há muito que tinha arrefecido e já não o comi. Enquanto andei “armado” em enfermeiro não pude deixar de reparar que a maioria dos convidados das “bodas de ouro” não perdeu o apetite e fez as honras ao prato de peixe do “copo de água”…sem interromper uma garfada que fosse!
Depois a festa continuou com os familiares dos “noivos” a cumprirem um animado e bem pensado programa em honra da Luísa e do Carlos, que tinham contraído património há cinquenta anos atrás em 5 de Abril de 1964 na Basílica da Estrela.

 Um mês e pouco depois –em 8 de Maio – o Carlos embarcou para a Guiné, integrado na Companhia de Caçadores 675.
Quando então saímos do cais da Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa, tivemos direito a lágrimas de saudade dos que ficaram.
Recriámos esse tempo de despedida na noite do “encontro” dos eternos namorados de há 50 anos nas Bodas de Ouro de 5 de Abril de 2014. 
Meio século depois de Binta numa época em que o vagomestre nos ”matava a fome” com “ciclistas”(feijão frade presente em todas as refeições). 
Que recordo com um sorriso.
 O que, sinceramente, a partir de agora não vai acontecer quando me apresentarem “bacalhau com broa”.
Ao almoço ou ao jantar.
 Nem lhe vou tocar…

As voltas que a vida dá !


JERO