terça-feira, 6 de abril de 2010

M226- PEDRO TAVARES DIXIT

As Tragédias Naturais e a Alcobaça Cisterciense de Hoje
    Cap. 2 – As Cheias em Alcobaça

    Mosteiro de Alcobaça

    Merece relevo focar a problemática da Água e do Meio Ambiente e como moldaram e condicionaram a “Aventura Cisterciense” em Alcobaça. Aventura ou Epopeia esta que se desenrolou em cima de um tabuleiro denominado “Planície Aluvionar”.

    "Planícies Aluvionares são zonas planas adjacentes aos cursos dos rios e sujeitas a inundação. Constituem uma das formações mais conspícuas e espalhadas no globo terrestre. Resultam de processos complexos de erosão e de depósito. Modificam-se ao longo dos tempos e evoluem, não para um qualquer modelo final, mas para a forma que têm no presente ou que tiveram em qualquer momento do passado" (Brown, A.G.).

    Rios e Planícies Aluvionares sempre foram fontes de riqueza para todas as gerações. Com actividades piscícolas e moinhos de água (azenhas) na Idade Média, depois como centros de comércio e também como fontes de energia mecânica para as primeiras indústrias. Tal movimento, à escala Europeia, resultou numa expansão apreciável de aglomerados populacionais nas Planícies Aluvionares, num aumento das pressões para reduzir os inconvenientes das cheias e na mudança de leitos dos rios.

    Extracto de arenito (grés) bem visível à entrada
    de Alcobaça, na estrada das Caldas

    A mestria do domínio da Água e da sua utilização útil teve o seu momento de glória na Europa no auge das Instituições Monásticas, onde a sofisticação alcançada nos deixa um património de surpreendente tecnologia e saber (Tavares, J.P.).

    As Cheias são fenómenos estatísticos, que se repetem a lapsos incertos de tempo, mas com probabilidades de frequência e de volume estimáveis. A sua ocorrência tem lugar sempre que a capacidade de escoamento e de infiltração das águas da chuva é excedida pela precipitação, que pode tomar a forma de autêntica tromba de água, de impacto marcante e concentrado em curto espaço de tempo (digamos, quinze minutos, talvez mais, o que é característico nos Climas Mediterrâneos).

    É interessante notar a semelhança entre as cheias do Rio Arno em Florença, Itália e a Alcobaça Cisterciense. Lá, como aqui, as cheias sempre foram um problema premente e persistente. Mas em Florença, cidade mais aberta, foram objecto de registo ao longo dos últimos 800 anos. Há mapas de cheias de 1333, 1740, 1844 e 1966. Embora estas cheias tenham sido causa de elevados danos patrimoniais e de muita perdas de vida, tais factos não foram impeditivos de Florença se ter tornado numa das cidades mais ricas da Europa.

    Mosteiro de Alcobaça, alçados Norte e Poente

    No fundo, há algo de comparável, nos trajectos da sua história patrimonial e de vida quase que milenária em meio hidro-geoaluvionar, entre a nossa Alcobaça e os seus Rios e a Florença e o Rio Arno. Ambas cidades históricas, ambas de riqueza patrimonial, ambas na sua planície aluvionar, ambas dela (planície aluvionar) beneficiando dos recursos de excepção e ambas dela padecendo o ónus da sua localização, sofrendo cheias, destruições e mortes, mas tudo contribuindo para a sua glória projectada no espaço e no tempo, para a sua teimosia em resistir à adversidade e para a sua determinação em renascer em riqueza acrescida sempre que fustigadas pelas catástrofes.

    Uma em cenário de florescimento renascentista, em meio de criação pluri-cultural, a outra em cenário de desenvolvimento Monástico-Cisterciense.

    Em Alcobaça, porém, nota-se o triplo efeito das cheias; inundação, depósitos estranhos e assentamento dos terrenos.

    A Água que sobe anormalmente, inundando e molhando, depressa volta a descer e a regressar a leito contido. A bacia hidrográfica que se estrangula em Alcobaça não é como a dos grandes rios internacionais como o Tejo e o Douro ou como a do Mondego. Nestes, as bacias de captação são extensíssimas em área e zonas de precipitação, que acumulam e, quando a água sobe, assim pode permanecer durante dias. Em Alcobaça, porem, a subida de cheia catastrófica pode ser rapidíssima, já que os tempos de escoamento são curtos. A sua probabilidade de ocorrência é bem menor do que nas lezírias do Tejo, já que depende de uma precipitação anormal e concentrada. O efeito surpresa é, porém, bem maior, apesar de a descida também ser

    Empedrado em estado novo, sem uso e enterrado.
    Rua D. Pedro V, frente à Junta de Freguesia de Alcobaça

    Mas, acompanhando a inundação, vem a enxurrada, que tudo arranca, arrasta e transporta. Criando rolhões e diques eventuais, que ao quebrarem o ímpeto das águas, as fazem depositar a sua carga. Carga de quatro tipos: de arrastamento, em suspensão, coloidal e também química. Volumes inimagináveis de terras, lamas, calhaus, detritos e lixo são então deixados nas zonas a montante. Como os rios têm forte desvio direccional em Alcobaça e é logo a juzante que se situa o estrangulamento da garganta da Fervença, será em Alcobaça que tenderão a fazer tais depósitos. Como terá sido bem sentido na referida cheia de 1772. Como se sente pelos depósitos surpreendentes, de várias dezenas de milhar de metros cúbicos, alguns retirados do Rossio quase duzentos anos depois, antecedendo a visita da Rainha Isabel II do Reino Unido, na década de cinquenta. Rossio onde sondagens recentes, mandadas executar pela Câmara Municipal para o Programa da “Requalificação Urbana” (Geocontrole, Gabinete de Geotecnia e Topografia, Ldª, 2002), revelaram profundidades de terras depositadas e tocadas pelo homem, que chegam a atingir doze metros! (Tal profundidade, também surpreendente, passa-se contudo em zona onde terá passado o Rio Baça na época do início construtivo da Abadia, em pleno Rossio actual de Alcobaça).

    Fenómeno idêntico terá posto cobro à utilização monástica do Convento de Stª Clara, frente a Coimbra, em pleno leito de cheia excepcional do Rio Mondego. É impressionante observar a “meia dúzia” de metros de altura de depósitos aluvionares dentro das naves conventuais e o enterramento claustral, recentemente postos a seco através da construção de uma ensecadeira e de complexo sistema de bombagem.

    Por diversas vezes, no século XIX e no século XX, ida a sabedoria e a memória cisterciense, assistiu-se a amplos recondicionamentos e remoções de terras no Rossio e nas zonas circundantes do Mosteiro (em 1839, 1872, 1909, 1951 e 1956, conforme fontes diversas, em particular Villa Nova, Bernardo). É o “sobe-e-desce” de Alcobaça! O início do séc.XXI trouxe a última mexida, com a “Requalificação Urbana de Alcobaça.

    Rossio de Alcobaça despojado, anos 30 (Foto D. Alvão)

    De referir ainda o belo Açude na garganta da Fervença, obra iniciada no séc. XVI e aforada ao irmão de Damião de Góis para fabrico de papel e para rega dos Campos da Maiorga, séculos mais tarde adaptado para produção de energia eléctrica por transformação de energia hidráulica, fruto do engenho e ao serviço da malograda Fábrica Fiação e Tecidos de Alcobaça. Este histórico Açude, apesar de se constituir numa importante obra de regularização e de aproveitamento hidráulico, está hoje ao abandono. Por a comporta de “descarga de fundo” não mais ter funcionado (supomos que desde algures na década de noventa), o notável açude apresenta-se hoje quase que completamente cheio dos referidos resíduos e depósitos aluvionares, que ficam ali grandemente retidos. Situação que também começará a ser perigosa, já que, lenta mas inexoravelmente, vai enchendo o leito para montante e subindo as cotas do rio.

    A terceira consequência calamitosa das cheias, os “Assentamentos Diferenciais”, representa o abatimento de parte do edificado em relação a outra parte do mesmo edificado, geralmente causado por mau funcionamento das fundações ou por desigual comportamento dos terrenos de fundação.

    O “empapamento” prolongado das solos não devidamente compactados, pode ocasionar assentamentos substanciais das camadas de fundação e o consequente abatimento das construções que nelas fundam.

    Mosteiro de Alcobaça em perspectiva esquemática,
    com linhas de assentamento do edificado

    A compactação devida dos solos baseia-se em quatro factores principais: natureza dos materiais a compactar, sua granulometria, condições de humidade e meios e processos utilizados na execução. A eficiente conjugação destes factores é ciência recente do domínio da Mecânica dos Solos. É natural que, apesar de todo o empenho e sabedoria construtiva Cisterciense, a grandeza e a extensão das movimentações de terras se tenham revelado altamente penalizantes, quando anormalmente solicitadas. A partir do séc.XVI e do tempo dos Cardeais Príncipes e Comendatários de Alcobaça e de todo o fervor construtivo dos séculos seguintes, como refere D. Maur de Cocheril, a necessidade construtiva levou à deslocação e re-implantação do Rio Alcoa, de modo a permitir o lançamento de, pelo menos, mais dois Claustros: o Claustro do Cardeal e o mais jovem Claustro do Rachadouro (da Biblioteca).

    Deste modo, a grande cheia referida de 1772 apanhou esse processo e, ensopando completa e demoradamente de água todos esses terrenos mexidos numa amplitude ainda nunca alcançada, causou estragos de magnitude catastrófica em muitas das instalações monásticas, com especial incidência nos Claustros referidos, em extensões e expressões significativas, provocando quebras, torturas e desfasamentos de edifícios, além de ocasionar certamente depósitos aluvionares impressionantes, que houve que remover.

    Constata-se, após atenta observação dos paramentos, alçados, pavimentos, frisos, cimalhas e diversos outros pormenores Arquitectónicos, que houve lugar a Assentamentos brutais de grande parte das estruturas construídas, ou ainda em construção, nos Claustros referidos. Assentamentos esses ocasionados pela cedência dos terrenos de fundação, sobretudo em bandas orientadas pela direcção preferencial das Linhas Hidráulicas originais, elas próprias paralelas às bancadas rochosas erodidas presentes no subsolo. Esses assentamentos, bem detectados e orientados, provocaram tensões elevadas no conjunto edificado dos dois Claustros que, devido à sua grande inércia de conjunto, quebraram e assentaram segundo padrões que se podem interpretar, o que já foi alvo de trabalho editado (Tavares,J.P.).

    Certamente que esta catástrofe tripla, inundação, depósito de terras e ruína Arquitectónica em seguimento de assentamentos diferenciais, há-de ter tido consequências gravosas enormes e ocasionado obras e acções de recuperação de monta.

    Não é assim de estranhar que, nas zonas construtivas Medievais que hoje nos chegam, se notem mais os efeitos dos Terramotos e que nas zonas posteriores da Idade Moderna sejam mais marcantes os efeitos das Cheias a das calamidades correlacionadas.

    (Continua: total 3 Capítulos)
    Bibliografia apresentada com o 3º Capítulo
    J. Pedro Tavares

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