O TEXTO QUE SE SEGUE É A CONTINUAÇÃO DA MINHA POSTAGEM M50(Guerra sem fim, Ex-Combatentes Homens com dores de Alma) e foi publicado no blogue "Luis Graça e Camaradas da Guiné".
Carta aos Pais do Nascimento
quarta-feira, 14 de Outubro de 2009
Guiné 63/74 – P5105: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (18): Mina antipessoal
1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 18ª história, com data de 10 de Outubro de 2009:
Mina antipessoal – parte II
Quarenta e tal anos depois... memórias do ex-Alferes Belmiro Tavares.
Estava em Bissau. Ao fim da tarde encontrei o Honório que me disse:
– Houve azar na tua Companhia. Fui buscar um soldado que chegou morto ao Hospital.
– Sabes como se chamava?
– Nascimento.
– É meu, porra!
Segui de táxi para o Hospital.
Mal cheguei dei de caras com o «Rato», o Cabo-Enfermeiro Martins.
Este estava no HM-241 a fazer tratamento de desparasitação (!?) e logo que me viu gritou-me a má nova:
- Morreu o Nascimento.
Estava agitadíssimo. Em cada três palavras dizia duas asneiras.
Já não sei como mas... seguiu-o pelos corredores do Hospital e fui dar a uma sala onde estava um corpo coberto por um lençol.
O «Rato» destapou o corpo e reconheci o corpo desnudado do Nascimento. Morto. Não tinha um pé.
Falei com o Médico de serviço.
– Como é que isto aconteceu? Por que morreu?
– Faleceu à saída da ambulância. Quando passou a porta do Hospital já não estava vivo.
Voltei a Bissau completamente destroçado. Recusava-me a acreditar!
Tinha conhecimento do caso de um militar que tinha ficado sem as 2 pernas e safou-se e o Nascimento estava morto... por ter ficado sem um pé!? Procurei e encontrei o Honório, a quem pedi mais pormenores sobre a evacuação.
Contou-me que estava muito mau tempo. Céu nublado baixo. A visibilidade era diminuta. Só um maluco é que arriscaria a descolagem de Bissau a caminho do Norte.
Está claro que foi o Honório. Fez voo rasante de Bissau a Binta, seguindo sempre o Rio Cacheu. Regressou com o ferido a Bissau sempre a baixa altitude. À chegada o ferido tinha o garrote desapertado. Foi metido numa ambulância a caminho do Hospital. Pouco depois rebenta um pneu da ambulância. Mais uma demora.
O último azar nesse dia terrível. Fatal para o Nascimento.Quando finalmente chegou ao Hospital era tarde demais.
O ex-Alferes Tavares desfia estas recordações com a voz embargada. Por vezes tem que parar de falar.
– Comigo em Binta, o Nascimento não teria pisado a mina anti-pessoal...Se junto a Santacoto «o trilho era recente», ele não devia ter sido pisado pela nossa tropa... Recordo o Nascimento como um soldado leal e frontal nas relações com os seus superiores. Não consigo esquecê-lo... Se lá estivesse ele podia estar vivo!
O ex-Alferes Tavares faz um longo silêncio.
– Oliveira... vamos ficar por aqui.
Mina antipessoal – parte III
Mais uma achega do Belmiro Tavares:
«O primeiro grande acto cívico da 675 aconteceu ainda na Guiné. Custeámos as transladações (urnas próprias) dos nossos 3 mortos em combate para que os corpos fossem entregues às famílias que tiveram assim a oportunidade de fazer funerais condignos. Caso contrário ficariam “esquecidos” algures na Guiné... a norte do Cacheu.»
Mais tarde acrescentou às suas “obrigações” tratar das lápides para as sepulturas dos companheiros que, pela ordem natural da vida, foram desaparecendo do número dos vivos.
E não só:Tivemos acesso a uma carta para os Pais do Soldado João Nunes do Nascimento – morto em combate em 30 de Julho de 1965, que é particularmente tocante.
«… Lisboa , 29 de Abril de 1968
Exmº. Senhor João Nascimento
…
O senhor não sabe quem eu sou mas vou dizer-lhe. Meu nome é Belmiro Tavares e sou Alferes Miliciano. Estive na Guiné de 1964 a 66 e fui comandante de pelotão a que pertenceu seu filho, o meu grande e saudoso amigo, João Nunes do Nascimento. Do fundo do coração peço desculpa por fazer sangrar mais uma vez a ferida que a morte do seu filho abriu no seu coração de pai mas eu, que tinha em grande consideração o seu filho, não podia por mais tempo calar este desejo íntimo, esta ânsia de desabafar e contactar com o pai dum dos meus soldados, o único do meu pelotão que tombou em defesa da Pátria. Aproveito a oportunidade para o felicitar pela educação esmerada que soube dar ao seu filho fazendo dele um modelo de virtudes e um bom português. Da consideração e estima que todos nós -oficiais, sargentos e soldados – tínhamos pelo seu filho já o senhor tem provas de sobejo e posso dizer-lhe, em abono da verdade, que o seu filho era um dos mais destacados soldados duma Companhia que se distinguiu na Guiné.
...
Dentro de dias, no dia cinco de Maio, um grupo de soldados da nossa Companhia reúne em Lisboa para mandar rezar uma missa por alma do seu filho e por alma de mais dois rapazes que para sempre nos abandonaram e que jamais poderemos esquecer… Ficar-lhe-íamos eternamente gratos se nos desse alegria da sua presença.
… Todos os anos no primeiro domingo de Maio a sua memória será reavivada por todos nós até que o bom Deus nos chame para junto dele.
…
a) Belmiro Tavares:
E os pais do Nascimento compareceram e compartilharam com os camaradas do seu filho a saudade e a memória do militar do 3º Pelotão, Soldado Atirador nº. 2.169/63, João Nunes do Nascimento.
Continua a não ser um final feliz. Mas o encontro com os Pais do Nascimento acrescentou dignidade e paz à família “675” que… não esquece e continua a honrar os seus mortos.
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
quarta-feira, 14 de Outubro de 2009
Guiné 63/74 – P5105: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (18): Mina antipessoal
1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 18ª história, com data de 10 de Outubro de 2009:
Mina antipessoal – parte II
Quarenta e tal anos depois... memórias do ex-Alferes Belmiro Tavares.
Estava em Bissau. Ao fim da tarde encontrei o Honório que me disse:
– Houve azar na tua Companhia. Fui buscar um soldado que chegou morto ao Hospital.
– Sabes como se chamava?
– Nascimento.
– É meu, porra!
Segui de táxi para o Hospital.
Mal cheguei dei de caras com o «Rato», o Cabo-Enfermeiro Martins.
Este estava no HM-241 a fazer tratamento de desparasitação (!?) e logo que me viu gritou-me a má nova:
- Morreu o Nascimento.
Estava agitadíssimo. Em cada três palavras dizia duas asneiras.
Já não sei como mas... seguiu-o pelos corredores do Hospital e fui dar a uma sala onde estava um corpo coberto por um lençol.
O «Rato» destapou o corpo e reconheci o corpo desnudado do Nascimento. Morto. Não tinha um pé.
Falei com o Médico de serviço.
– Como é que isto aconteceu? Por que morreu?
– Faleceu à saída da ambulância. Quando passou a porta do Hospital já não estava vivo.
Voltei a Bissau completamente destroçado. Recusava-me a acreditar!
Tinha conhecimento do caso de um militar que tinha ficado sem as 2 pernas e safou-se e o Nascimento estava morto... por ter ficado sem um pé!? Procurei e encontrei o Honório, a quem pedi mais pormenores sobre a evacuação.
Contou-me que estava muito mau tempo. Céu nublado baixo. A visibilidade era diminuta. Só um maluco é que arriscaria a descolagem de Bissau a caminho do Norte.
Está claro que foi o Honório. Fez voo rasante de Bissau a Binta, seguindo sempre o Rio Cacheu. Regressou com o ferido a Bissau sempre a baixa altitude. À chegada o ferido tinha o garrote desapertado. Foi metido numa ambulância a caminho do Hospital. Pouco depois rebenta um pneu da ambulância. Mais uma demora.
O último azar nesse dia terrível. Fatal para o Nascimento.Quando finalmente chegou ao Hospital era tarde demais.
O ex-Alferes Tavares desfia estas recordações com a voz embargada. Por vezes tem que parar de falar.
– Comigo em Binta, o Nascimento não teria pisado a mina anti-pessoal...Se junto a Santacoto «o trilho era recente», ele não devia ter sido pisado pela nossa tropa... Recordo o Nascimento como um soldado leal e frontal nas relações com os seus superiores. Não consigo esquecê-lo... Se lá estivesse ele podia estar vivo!
O ex-Alferes Tavares faz um longo silêncio.
– Oliveira... vamos ficar por aqui.
Mina antipessoal – parte III
Mais uma achega do Belmiro Tavares:
«O primeiro grande acto cívico da 675 aconteceu ainda na Guiné. Custeámos as transladações (urnas próprias) dos nossos 3 mortos em combate para que os corpos fossem entregues às famílias que tiveram assim a oportunidade de fazer funerais condignos. Caso contrário ficariam “esquecidos” algures na Guiné... a norte do Cacheu.»
Mais tarde acrescentou às suas “obrigações” tratar das lápides para as sepulturas dos companheiros que, pela ordem natural da vida, foram desaparecendo do número dos vivos.
E não só:Tivemos acesso a uma carta para os Pais do Soldado João Nunes do Nascimento – morto em combate em 30 de Julho de 1965, que é particularmente tocante.
«… Lisboa , 29 de Abril de 1968
Exmº. Senhor João Nascimento
…
O senhor não sabe quem eu sou mas vou dizer-lhe. Meu nome é Belmiro Tavares e sou Alferes Miliciano. Estive na Guiné de 1964 a 66 e fui comandante de pelotão a que pertenceu seu filho, o meu grande e saudoso amigo, João Nunes do Nascimento. Do fundo do coração peço desculpa por fazer sangrar mais uma vez a ferida que a morte do seu filho abriu no seu coração de pai mas eu, que tinha em grande consideração o seu filho, não podia por mais tempo calar este desejo íntimo, esta ânsia de desabafar e contactar com o pai dum dos meus soldados, o único do meu pelotão que tombou em defesa da Pátria. Aproveito a oportunidade para o felicitar pela educação esmerada que soube dar ao seu filho fazendo dele um modelo de virtudes e um bom português. Da consideração e estima que todos nós -oficiais, sargentos e soldados – tínhamos pelo seu filho já o senhor tem provas de sobejo e posso dizer-lhe, em abono da verdade, que o seu filho era um dos mais destacados soldados duma Companhia que se distinguiu na Guiné.
...
Dentro de dias, no dia cinco de Maio, um grupo de soldados da nossa Companhia reúne em Lisboa para mandar rezar uma missa por alma do seu filho e por alma de mais dois rapazes que para sempre nos abandonaram e que jamais poderemos esquecer… Ficar-lhe-íamos eternamente gratos se nos desse alegria da sua presença.
… Todos os anos no primeiro domingo de Maio a sua memória será reavivada por todos nós até que o bom Deus nos chame para junto dele.
…
a) Belmiro Tavares:
E os pais do Nascimento compareceram e compartilharam com os camaradas do seu filho a saudade e a memória do militar do 3º Pelotão, Soldado Atirador nº. 2.169/63, João Nunes do Nascimento.
Continua a não ser um final feliz. Mas o encontro com os Pais do Nascimento acrescentou dignidade e paz à família “675” que… não esquece e continua a honrar os seus mortos.
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________ . Luís Graça, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, deixou este comentário no poste 5105, no dia 14 de Outubro de 2009:
Binta, meu caro JERO, foi também uma escola de virtudes... Na tua boca, poderia ser um auto-elogio, escrito por um dos fiéis leitores, deve aproximar-se da verdade...Parece ser uma lugar-comum, e até uma afirmação temerária dizer que situações-limites como a guerra e a preparação para a guerra podem ser reveladoras...Reveladoras do que há de melhor e pior nos seres humanos... Em grupo, como primatas sociais que somos, para mais territoriais, predadores, armados de massa cinzenta q.b. e de tecnologias de morte q.b., somos capazes de tudo, incluindo matar e ter compaixão pelas nossas vítimas, e até matarmos-nos por altruísmo... (quantos heróis não terão sido suicidas altruístas ?).A morte dos nossos camaradas, ao longe ou ao nosso lado, deixou marcas... Éramos uns putos e não estávamos preparados nem para matar nem para morrer nem para ver morrer (independentemente da causa, da bandeira...).A tropa, a IAO e as todas palhaçadas que andámos a fazer, uns por Santa Margarida, outros por Bolama, outros por Contuboel, tudo isso não passava de um prolongamento das nossas brincadeiras de adolescentes... Uns levavam-nas a sério, até a sério demais... Mas ainda estávamos na guerra do faz-de-conta...(de tal maneira que houve Companhias, tal como a minha, a CCAÇ 12, que teve o seu baptismo de fogo, com mortos e feridos graves, ainda em fato-macaco, em farda n.º 3, logo a seguir ao fim da IAO)...A guerra, logo a seguir à IAO, essa, era mesmo a sério... Sobretudo as minas, as emboscadas, as colunas logísticas, os golpes de mão, os patrulhamentos ofensivos, a espera (à noite) do ataque, da flagelação... Os dias, as noites, o inferno verde, os mortos, os feridos, a sede, a desidratação, as abelhas, os mosquitos... Enfim, e sobretudo, o INIMIGO sem rosto... Quase como Deus, ubíquo, invisível, imprevisível, insondável...A guerra marcou-nos com um ferro em brasa... por muito que a gente negue, denegue, racionalize, faça humor, ironize, verbalize, tente esquecer, escamotear, branquear, efabular, infantilizar...Gestos como o do Belmiro Tavares da tua história também nos sensibilizam e enobrecem (não já como portugueses, simplesmente como homens)... E as cartas que o Belmiro e tantos outros graduados, anónimos, mandaram aos pais dos nossos camaradas mortos (em combate, mas também por acidente e doença) deviam poder chegar ao nosso conhecimento, deviam ser conhecidas e preservadas, deviam figurar no futuro museu da guerra colonial...São documentos muitos íntimos guardados ainda pelas famílias (?)... Quantas cartas dessas terão sido escritas? Quantas poderão ainda chegar até nós, digitalizadas ou transcritas para suporte digital? Ou ao Arquivo Histórico-Militar, os originais?Cartas (como a do Belmiro Tavares escrita aos pais do malogrado Nascimento) ajudaram, seguramente, a fazer o luto, a humanizar a morte, a suportar a perda irreparável que era a morte de um filho na flor da vida, e para mais a milhares de quilómetros de distância, numa terra estranha...Estas cartas, de consolo, de solidariedade, de compaixão, escritas por camaradas nossos às famílias em luto, contrastavam com o seco, brutal, frio, impessoal, telegrama, remetido pelos competentes serviços do Exército... (Mas era assim, julgo que era assim, que se comunicava, naquele tempo, a funesta notícia às famílias... Poderia ter sido de outra maneira? Sem dúvida, deveria ter sido de outra maneira...).
Luís Graça
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