segunda-feira, 5 de outubro de 2009

M47-À DISTÃNCIA NO TEMPO...


DIÁRIO-– 28 DE DEZEMBRO 1964
GUINÉ-BINTA

-O DIA MAIS TRÁGICO DA COMPANHIA-

Passavam alguns minutos do meio dia.
Regressávamos de mais uma patrulha. Binta estava a poucos quilómetros e todos tinham deixado já de pensar nas peripécias movimentadas da perseguição a um grupo inimigo na região de Buborim, para pensar nas delícias de um banho que atenuasse a fadiga de algumas horas de marcha na selva.
Tínhamos saído às 6.30 horas, seguindo de viaturas até Sansancutoto. A partir daí seguiram apeados os 1.º e 2.º grupos de combate, debaixo do comando do nosso Capitão.
A missão seria um «golpe de mão» à tabanca de Udasse.
Quinhentos metros à frente de Banhima foi visto à distância um grupo inimigo que desapareceu rapidamente, internando-se no mato.
Percorridos mais uns quilómetros e quando se atravessava o rio Buburim em direcção ao objectivo, foram vistes numerosos grupos de mulheres e alguns homens armados que iam colher arroz numa bolanha.
Evitou-se o mais possível denunciar a nossa presença, continuando-se a progressão lentamente e aproveitando os arbustos da orla da bolanha, que começámos a contornar, para «desenfiados» continuarmos em direcção a Ubasse.
Apesar de todos os cuidados fomos pressentidos. Os grupos referidos começaram a fugir em direcção a Udasse, sendo perseguidos pelas nossas tropas que abriram fogo e abateram 7 indivíduos, fazendo ainda 3 prisioneiros.
Perdida a surpresa e denunciada a nossa presença na região, não se continuou sobre o objectivo iniciando-se regresso em direcção à coluna-auto.
Meio-dia e trinta.
Um estoiro medonho, um rebentamento de violência extraordinária, faz parar a coluna. A segunda viatura, um Unimog, estava envolta numa fumarada expessa e começava a arder.
Simultaneamente de um dos lados da estrada, emboscado no mato o inimigo começava a disparar.
Embora paralisados momentaneamente pela surpresa os nossos homens têm uma reacção fortíssima que faz calar em poucos momentos o inimigo.
Há uma pausa; os oficiais disciplinaram o fogo e todos procuram saber o que se passa lá à frente.
A viatura sinistrada incendiara-se e há feridos que gemem e que correm perigo junto das chamas que podem provocar uma explosão no depósito do Unimog e incendiar o capim das bermas do caminho.
A mata fechada, a fumarada da viatura incendiada, a estrada multo estreita, mais complicam a situação e há dificuldades nos primeiros momentos em avaliar a extensão e gravidade do acontecimento.

Não restam dúvidas sobre a causa do rebentamento.
Tinha sido uma mina.
Sob o pneu direito da retaguarda da viatura que seguia em segundo lugar, tinha rebentado um engenho explosivo de grande potência.
Todos os homens que seguiam na viatura tinham sido projectados com violência.
O médico e os enfermeiros acorrem à frente.
«Há um morto!» — diz uma voz.
A notícia corre ao longo da coluna e faz estremecer aqueles que a ouvem, abalando-os mais que o violente estampido de há momentos.
«O furriel Mesquita está morto
Será possível o pobre do furriel Mesquita já não pertencer ao mundo dos vivos? Cada qual interroga-se com desespero, sem poder largar a sua arma, sem poder sair do lugar onde está, sem poder até limpar uma lágrima.
O inimigo pode voltar à carga e a vigilância não pode descurar-se um momento.
O médico e os dois enfermeiros, auxiliados por alguns soldados, multiplicam-se em esforços para socorrer os feridos.
Os lamentos misturam-se com as expressões de conforto daqueles que socorrem os que sofrem atrozmente.
O perigo das chamas passou devido à coragem de alguns soldados que retiraram os seus camaradas feridos de imito da viatura sinistrada, cujos depósitos felizmente não chegaram a explodir por a gasolina se ter derramado pelo chão.
Há 8 feridos e o estado de alguns inspira sérios cuidados.
O Unimog atingido pela mina arde completamente, transformado num autêntico braseiro donde sai um fumo espesso que atinge umas dezenas de metros de altura. Alguns metros à sua volta há um calor horrível, mas é mesmo ali que têm de ser tratados os feridos.
É pedido um helicóptero.
Aqueles momentos infernais parecem prolongar-se indefinidamente.
A certa altura, na estrada, a algumas centenas de metros da retaguarda da coluna, surge um grupo inimigo que parece dançar festejando o rebentamento da mina. Faz algumas rajadas de pistola metralhadora na nossa direcção. Responde-se ao fogo com algumas morteiradas, uma das quais cai próximo do local onde se encontra o inimigo, que se pôs em fuga.
A viatura destruída, que com o rebentamento, ficou atravessada no meio da estrada, é encostada à berma direita, seguindo a coluna para a frente, para uma região mais despida de vegetação, onde se aguarda o helicóptero pedido.
Finalmente, quase duas horas depois do rebentamento da mina, é possível evacuar os primeiros feridos. O helicóptero faz várias viagens transportando os feridos mais graves para Farim, donde são evacuados em avionetas para Bissau.
Entretanto no aquartelamento viviam-se horas de expectativa desesperante, pois não se sabia nada de concreto sobre a coluna, embora o pedido do helicóptero e de dois DO não augurasse nada de bom.
Pelas 15 horas houve ordem para o 3.° grupo de combate ir ao encontro da coluna, montar a segurança junto ao cruzamento da estrada Bigene-Guidage.
A coluna surgiu pouco depois.
Desfigurados, física e moralmente abatidos, eles passaram pelos seus camaradas que ficariam emboscados algumas horas.
Aqueles que ficaram no mato e que só então souberam a extensão da tragédia que já adivinhavam há algumas horas, viveram momentos de uma dolorosa angústia dese­jando com uma raiva surda o aparecimento do inimigo traiçoeiro.
Lado a lado, sem poderem falar, com a alma dilacerada por saberem um seu camarada morto e outros gravemente feridos, eles tinham que se manter imóveis aguardando o inimigo que talvez viesse explorar a sua vitória cobarde, arriscando uma sortida ao aquartelamento.
Entretanto a coluna chegou a Binta.
Apesar de todos os dias em contacto com a morte não nos poderíamos habituar à ideia que um camarada, um amigo, tinha sido levado brutalmente para sempre, do mundo dos vivos.
O espectro da morte, com requintes dantescos, tinha descido das suas paragens de Sombra Eterna, para levar no seu manto mais uma vida.
Ao anoitecer regressou o 3.° grupo de combate que não teve contacto com o inimigo.
As palavras não poderão dar uma ideia pálida dos momentos que se viveram no dia 28 de Dezembro.
Ele ficará assinalado na existência de todos os homens da «675» como um dia trágico que não se esquecerá jamais.

JERO















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