sexta-feira, 4 de setembro de 2009

M25 - Morte na noite de Natal de 1963 ou a história triste do Soldado Manuel

UM EPISÓDIO DE GUERRA NA GUINÉ PORTUGUESA
Na parede de adobe, mal caiada, e onde esverdeadas manchas de humidade alastravam, o calendário marcava uma data: 24 de Dezembro.

Com a janela aberta, por onde apenas entrava, na abafada, sufocante noite tropical, uma suspeita de frescura, o jovem oficial miliciano, à luz de uma vela, escrevia:

«… Minha Querida Mãe, são 21 horas e 40… ».

À luz de uma vela, porque a chama do petromax é alvo demasiado visível para qualquer atirador especial terrorista, alcandorado, ao longe, no cimo de alguma árvore. Mas ouve-se um estampido. Podia bem ser a rolha de uma garrafa de champanhe a saltar…
Ao estampido segue-se, porém o assobio quase imperceptível de uma bala que vai cravar-se na húmida parede de adobe, coisa de um metro acima da cabeça do oficial. Este apaga logo a vela. Depois, às apalpadelas, no escuro, procura o capacete e a pistola.
Quando finalmente sai já o duelo – a tiros de espingarda e rajadas de metralhadora - está a travar-se entre os terroristas (ocultos na floresta) e os seus soldados abrigados por detrás da muralha – só aparentemente frágil – de velhos bidões de gasolina cheios de areia. Entre uns e outros a cerca de arame farpado.

Está isolada a pequena força do destacamento de Caçadores.

O posto mais próximo é a muitos quilómetros de distância. Antes que amanheça, nenhum auxílio podem esperar estes homens. Mas será que os terroristas se aprestam para um ataque frontal? Horas iguais de uma noite abafada e húmida.

Aos soldados e ao oficial também, o que sobretudo os irrita é que aquele inoportuno tiroteio aconteça em noite de Natal, já com a mesa posta para a consoada.

E havia broas, uma galinha assada, algumas garrafas de bom vinho.

A noite, entretanto, povoa-se de clarões – as armas de fogo que disparam incessantemente, assinalando cada segundo com um tiro. E as horas passam.

Mas o jovem oficial nem tempo tem para ver as horas no pequeno mostrador luminoso do seu relógio de pulso. E nem sequer pensa no perigo – ali entrincheirado e tendo pela frente um inimigo bem armado, que a palmos conhece o terreno e vê de noite, como o jaguar.

Agora só pensa naquela carta que teve de interromper:

«… são 21 horas e 40… ».

Mas quando é que isso foi?

Era noite de Natal. Ele escreveu à luz discreta de uma vela de estearina, algures no mundo, nesse mundo onde não há clarões de armas de fogo, nem assobios de balas, ardiam círios nos altares, centenas de círios, milhares de círios, que não era preciso apagar à pressa no princípio de uma carta…

E agora? Sim. A meia noite deve estar próxima. Talvez o padre, algures, já esteja a encaminhar-se para o altar. Mas o jovem oficial não o sabe de certeza – e não pode ter um olhar para o mostrador luminoso do seu relógio de pulso.
A pistola-metralhadora palpita-lhe nas mãos como se fosse dotada de vida própria e chispas de fogo, desdobradas em leque, correm, segundo a segundo, em direcção à negra cortina de arvoredo.

No mundo em que não há guerra já decerto agora o sacerdote acabou de celebrar a Missa do Galo.

Aqui, o fogo começa, enfim, a esmorecer.

Naturalmente, os terroristas principiam a retirar, para que os aviões ao amanhecer, se viessem bombardear a floresta, já não os encontrem…

Uma a uma, calam-se as armas automáticas do inimigo. Uma a uma, a intervalos certos, como se houvesse, algures no mato, a batuta de um maestro.

Mas será de facto a retirada? Não será antes o silêncio de mau agoiro que sempre antecede a gritaria de um assalto frontal?

Não. É efectivamente a retirada. E devagar, como se lhe custasse a acordar de um pesadelo, o jovem oficial recolhe ao seu quarto, risca um fósforo, acende a vela, atira par um canto o capacete, que está a queimar-lhe a testa, e suado, exausto, com os nervos num feixe, senta-se ,de novo, à mesa para escrever:

«… pois agora, minha querida mãe, são 3 horas e 20.Eu e os meus soldados tivemos uma noite de Natal muito divertida. Nem imagina… As broas que nos mandou souberam a pouco. E das garrafas mandadas pelo pai diga-lhe que não ficou nem uma gota».

21 horas e 40. 3 horas e 20.

Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.
_________

Agora, no hotel, em Bissau, sentado ao meu lado, almoça. Está no porto o barco que o vai levar de regresso a Lisboa. Trouxe este barco 800 homens. Vai partir com outros tantos, aproximadamente. Os que chegam passam, em camiões, a cantar. Também cantam os que partem. Entretanto, o jovem oficial diz-me, com simplicidade:

- À minha mãe é que nunca hei-de contar o que foi aquela noite…

Mas logo acrescentando:

- «Agora uns meses à boa vida e depois a África outra vez, como empregado em qualquer empresa de Angola ou de Moçambique: este veneno de África entrou-me para sempre no sangue».
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Artigo não assinado.

Publicado em «O ALCOA» em 8 de Fevereiro de 1964 (Ano XVII-Nº.876)

Desde há cerca de 2 anos que tento descobrir dois mistérios que resultam deste conto:

1) Quem é o Alferes Miliciano.

Só pode ser da região de Alcobaça. Regressou à Metrópole num navio que deixou Bissau em Janeiro de 1964.Já localizei as Companhias e Pelotão de Morteiros e AAA que regressaram nessa altura. Esses militares estiveram cerca de dois anos na Guiné onde a guerrilha começa a ter importância no terreno a partir dos primeiros meses de 1963.

Para se ser Alferes Miliciano nesse tempo era preciso ter habilitações literárias no mínimo equivalentes ao 3º. Ciclo dos Liceus (antigo 7º. Ano).

Pesquisei no arquivo da C.M.de Alcobaça os registos de mancebos respeitantes aos anos de 1958, 1959, 1960 e 1961. Encontrei vários nomes, consegui alguns contactos pessoais mas... nada. Tenho em aberto uma pessoa conhecida do Professor Arduino,de Alpedriz, que pode ser o autor de UM EPISÓDIO DE GUERRA NA GUINÉ PORTUGUESA.

Mas passaram mais de 40 anos e posso andar à procura de uma pessoa que já não esteja neste mundo.

2) Quem é o militar que morreu na véspera de Natal de 1963.

Nos registos oficiais do E.M.E. só um militar das milícias locais que morreu por acidente.

Com nome de Manuel há registo em 28 de Dezembro de 1963:

MANUEL RAMALHO CAPELAS
1º.CABO-ATIRADOR
CCAV 567
BINAR
DATA DE FALECIMENTO – 28 DE DEZEMBRO DE 1963
FERIDO EM COMBATE

Mortos em Campanha – Guiné – livro 1, pgs. 42

Não é impossível um engano nos registos mas não é nada vulgar…

Há outras “incoerências” que não encaixam na história: Binar não é um posto fronteiriço e um primeiro-cabo não era habitual ser “impedido” de um Alferes.Por outro lado a CCav 567 só acabou a sua comissão em meados de 1965!

Resumindo e concluindo: se alguém souber alguma coisa desta misteriosa história contacte-me ,por favor:

José Eduardo Reis de Alcobaça, telem. 96 3147683.

Fico desde muito grato.

JERO

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