quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

M-151-O NOME DE DEUS EM VÃO





O nome de Deus em vão
Narrador
O homem é um fugitivo dos seus medos.
Um estranho construtor dos seus fantasmas.

Traz na sua certidão de origem o carimbo da limitação e uma singular ideia, apetência, intuição a que chama Deus. Estranhamente a sua natureza limitada foi capaz de conceber a ideia de infinito. Deus é o seu referencial, quer se diga crente ou descrente.

Soberbamente, ingenuamente, sincera ou cinicamente pretende agir…«em nome de Deus».

Estranha ideia a que o homem dá formas variadas, místicas ou aberrantes, surgindo como multidão de ídolos, projecção daquilo que o homem desejaria que fosse.
Na guerra a ideia de Deus surge como um encontro brusco, na porta do fim.

À distânca no tempo … um capelão militar e um Alferes num longínquo aquartelamento na fronteira Sul da Guiné…matavam o tempo .O final da comissão de dois anos ainda vinha longe. A conversa tinha sido longa …enquanto percorríam a paliçada em volta do quartel.

Fala do Alferes:
«E os homens do mato seriam religiosos? Teriam talvez a mesma crença, rezando aos mesmos santos? Ou invocariam Alá, ou o espírito da floresta, na esperança da sobrevivência, da vitória, do aniquilamento dos contrários…»
Nós, afinal, que nos julgávamos os bons em face dos outros, para eles éramos o último elo de todos os malefícios que tinham construído a sua opressão.
Seria a guerra deles contra a opressão ou simples extensão de ideologia, inexorável e dogmática, como todas as ideologias?

Que terá, de facto, a Divindade a ver com as fronteiras das nações ou com os sistemas do poder que os homens constroem?

O Cabo Aires passou à nossa frente debruçando-se sobre os abrigos e espreitando para dentro das camaratas.
Para ele a fé era simples: era fé.
Como estar ali era simples: era dever.
- Hora do terço – ia dizendo, como um rumor murmurado.
Os homens chegavam-se, pausadamente, como que condicionados por uma lembrança que depois adormecia nos actos da vida real. Ia quem queria. Estivesse por ali ou não o padre (o capelão militar), que fazia a deambulação dos quartéis.
Sentavam-se na camarata grande. O Cabo Aires orientava a reza. Diariamente. Com a precisão cíclica da necessidade.
A oração repetida, como lengalenga de cumprir, rolava num tom uniforme de murmúrio, cadenciada, própria de quem não tem cabeça para pensar muito mas apenas desejo inconsciente de estar bem consigo e com o desconhecido.
Dedilhavam as contas maquinalmente.
Sentava-me entre eles, como se o acto nivelasse galões e mandos, numa dimensão que nos irmanasse para além das aparências.
A fé é de facto um tremendo espaço em que o homem forçosamente pensa desejando não pensar. Não pensar muito. Que o pensar muito traz uma enfiada de interrogações a que não se vê o sentido. Ou então o sentido deverá estar noutro lado.
A fé é uma resposta de sentido ao absurdo da vida. Resposta ansiosa a uma cadeia de contradições sem resposta.
…Pouco antes, ao cair do sol, os africanos tinham posto as suas esteiras no chão e feito também a sua reza, também repetitiva, também murmúrio, também lengalenga de necessidade.
Apenas os ritos separavam ao homens brancos cristãos dos africanos quase todos muçulmanos ou islamizados.
Também eles a horas certas se juntavam debaixo de um mangueiro, em filas de recolhimento, executando o seu ritual de vénias, gestos e olhares.
Na mão usavam umas contas dedilhadas freneticamente, enquanto repetiam em coro ou sussurradamente :
Alá Akbaro! – Alá que estás no céu!

Rezava também com eles. Ficava em pé, atrás, em silêncio. Muitos soldados brancos chegavam-se também. O silêncio era afinal o nosso modo de rezar. A interrogação do ser e da certeza do incerto.

Alá Akbaro… Santa Maria Mãe de Deus…Agora e na hora da nossa morte…

Nunca percebi se, separadamente ou em conjunto, rezávamos cada um ao seu Deus ou a um mesmo Deus, que está para além das diferenças que o tempo criara.

Quando o padre estava no quartel, dizia missa ao amanhecer, sobre o capô de um jeep. Passava-se a voz, enquanto ele, bonacheirão, silencioso e interrogativo, estendia os panos e instrumentos do ritual sobre a chapa castanho-baça da viatura.
Todos assistiam, brancos, pretos, cristãos, muçulmanos, com o mesmo ar recolhido, compenetrado, com a mesma naturalidade.

O padre desenrolava os gestos do ritual da missa. A simbologia esfumara-se no passado. Os textos falavam de estranhas histórias de um povo longínquo e de um rabi bondoso.
Os homens seguiam em silêncio, olhando-se furtivamente, cristãos, animistas, muçulmanos, como se nos sentíssemos caminhantes de uma longa jornada comum de que não se sabe o fim.
Reconhecíamo-nos semelhantes por ser crentes.
O que era afinal “isso” a que chamávamos Deus?

O padre dobrava agora os instrumentos do ritual. O sol brilhava passando em faixas nos intervalos da folhagem dos poilões.

Aquele pensar solto durante a missa, era o resumo das longas conversas com os homens grandes da tabanca. Homem grande era homem velho, homem sábio.
Todos chegávamos à convergência de que acreditávamos num princípio, origem e fim, suporte de existência, raiz do que está para além do limite e do tempo.
O resto era apenas modo, expressão das crenças acumuladas, cada um com as suas.

Agarrávamo-nos àquela estranha vontade de sobreviver, como vontade de ser sempre e aversão ao desaparecimento.
E todo o sentido de vida se resumia à simplicidade das palavras:
Pai nosso que estais no céu…Alá Akbaro.

Adaptação de JERO a texto de LUÍS ROSA
In “Memória dos dias sem fim”.

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