terça-feira, 1 de março de 2011

M 340 - ATÉ AMANHÃ, ESPERANÇA

Até amanhã, Esperança!

 O Tribunal estava instalado no piso superior da Ala Norte do Mosteiro de Alcobaça.
No piso debaixo , no antigo Claustro da Portaria,(assinalada a azul na planta ao nível da entrada)funcionava a cadeia(*). Na entrada da cadeia o carcereiro tinha direito a uma espécie de gabinete e ,numa sala contígua ,estava instalado o espaço feminino da prisão.
 Em 1960, vinham ainda longe os tempos da liberalização do aborto, duas mulheres estavam presas na cadeia de Alcobaça.
 Um aborto nesses tempos quando era descoberto incriminava ,normalmente, quem o fazia – a parteira – e quem a ele se submetia – a mulher grávida. Era o caso.
 No lado masculino da cadeia, que englobava uma dúzia de celas e um pátio de “lazer”, haviam presos a cumprir penas ligeiras, outros a aguardar julgamento e alguns já julgados e condenados a penas mais severas. Que aguardavam transferência para cadeias nacionais(Alcoentre, Leiria, Lisboa, etc).
À distância no tempo poderão registar-se algumas inexactidões mas no essencial poderemos garantir que a história que se segue não é ficção. Aconteceu mesmo.
 Um preso condenado a 8 anos de cadeia, nazareno por nascimento e pedreiro de profissão, era dos mais jovens da “tripulação” prisional. Num dia aziago tinha-se envolvido numa discussão com um colega de profissão e respondeu a uma estalada com o que tinha mais à mão.
 Uma picadeira (um martelo de picar paredes), que não deixou em bom estado a cabeça do seu antagonista, que sofreu um grave traumatismo craniano.
O Colectivo teve mão pesada e aplicou-lhe 8 anos de prisão efectiva.
 O jovem aguardava na cadeia de Alcobaça transferência para uma cadeia nacional.
 É o protagonista masculino da nossa história. Que passamos a tratar por Maranhão.
 A outra personagem da nossa história é a moça do aborto. Que vamos chamar de Madalena.
 Os nomes são fictícios. Com longos dias e meses a cumprir naquele espaço fechado começaram a falar-se junto da porta que os separava.
 A porta do pátio da cadeia, que demarcava a fronteira entre os homens e as mulheres, presos em nome da lei.
A velha porta do pátio era de madeira e tinha fendas.
Algumas já tão largas ,devido ao sol e à chuva de muitos verões e invernos , que davam para conversar e para ter uma visão apertada com quem se falava.

 A porta fechada do pátio cada vez aproximava mais o Maranhão e a Madalena que, com o decorrer do tempo, dos olhares apaixonados se passaram a tocar com as pontas dos dedos.
 Através das fendas da velha porta de madeira.
A rogo do Maranhão a Madalena foi satisfazendo alguns pedidos mais ousados do nazareno. Mostrava-lhe as pernas e outros encantos.
 Estes intervalos de paixão eram interrompidos logo que o  Carcereiro chegava ao seu gabinete.
 Contrariado o Maranhão regressava a sua cela.
E fazia o que podia…aproveitando a solidão possível no preenchido espaço da pequena prisão.
 Mas um dia a tutela prisional ordenou obras na velha cadeia. Repararam-se as celas e caiaram-se as velhas paredes da cadeia.
 Vieram operários, com escadas, baldes de cal e pincéis.
 Num país de brandos costumes os operários foram um dia almoçar fora com o Carcereiro.
E durante a hora do almoço as escadas ficaram no pátio…
O Maranhão viu a oportunidade única de aproveitar uma das escadas para passar por cima da porta.
Para o lado das mulheres.
 E saltou.
Foi um momento de alta tensão.
Tão alta que…algo lhe faltou.
A Madalena amparou-o nos braços e, carinhosamente, fez-lhe voltar algumas das “forças” que o salto tinha feito fraquejar…
 Abraçaram-se arrebatadoramente.
Num minuto de sofreguidão subiram até às nuvens e, de olhos fechados, voltaram à terra.
Um último beijo e o Maranhão “saltador” voltou para o pátio dos homens. As obras acabaram na manhã do dia seguinte e a rotina dos dias anteriores recomeçou.
Conversas e roçar de dedos através das fendas da velha da porta do pátio.
Uns dois ou três meses depois rebentou a “bronca”.
A Madalena teve dores de barriga e hemorragias e necessitou de cuidados médicos. O diagnóstico foi peremptório. Estava grávida.
 A partir dali as dores de barriga da Madalena transmitiram-se também ao  Carcereiro e ao Delegado do Procurador da República, Director da cadeia por inerência das suas funções.
Para apuramento de responsabilidades seguiu-se um processo disciplinar. De que foi escrivão um puto de 20 anos. Então a dar os primeiros passos no mundo do trabalho e …da justiça.
 No registo dos autos e no “registo” das suas memórias não mais esqueceu os rostos, os olhares, as angústias e os relatos dos amantes da velha cadeia do Tribunal de Alcobaça. No espaço do antigo Claustro da Portaria…
 A Madalena foi transferida pouco tempo depois para a cadeia de Tires , um estabelecimento prisional para mulheres.
 O Maranhão foi para Leiria cumprir a longa pena a que tinha sido condenado.
 E , entretanto, o processo disciplinar foi arquivado…
O puto-escrivão de 20 anos foi prá tropa.
 Onde esteve 4 longos anos.
 Na Metrópole e no Ultramar.
 Na guerra da Guiné.
Quando voltou da guerra …voltou lentamente à vida civil.
E cerca de um ano depois de “aterrar”… partiu para outras vidas.
Cheias de …falta de tempo.
 Mas num recanto da sua cabeça, da sua memória nunca se apagou completamente a pungente história de vida da Madalena e do Maranhão. Que lhes terá aquecido?
A Madalena teve um parto feliz? Foi mãe de um rapaz ou de uma rapariga?
E o pai? Cumpriu em Leiria os 8 anos e depois? Terá procurado a Madalena da sua vida de cativeiro?
Passaram 50 anos.
 Na vida nem sempre se encontram todas as respostas.
Terminamos com um voto.
Que dos amores de Alcobaça tenha nascido uma menina.
E que a essa menina tenha sido dado o nome de Esperança.
 E porque a esperança deve ser a última coisa a morrer…
Até amanhã, Esperança!


JERO


Nota-(*) Em 1834, as ordens religiosas foram extintas em Portugal e todos os seus bens nacionalizados.
 A partir desta altura, o Mosteiro é ocupado, reconvertido e adaptado a várias funções públicas e privadas, designadamente: Paços do Concelho, Câmara Municipal, Administração do Concelho, Prisão, Tribunal Judicial, Teatro Municipal (localizado no Refeitório), Caixa de Depósitos, Montepio Alcobacense, Repartição da Fazenda e Finanças, Conservatória de Registo Predial, Escolas de Alcobaça, Quartel (Regimento de Cavalaria 9 e depois Cavalaria 4 e Artilharia 1), Lar Residencial, Biblioteca Municipal, entre outros.











1 comentário:

  1. Caríssimo JERO, para além da tua agradável pessoa, que enriquece quem contigo lida, mostras--nos através da tua bela prosa "outros encantos" de leitura feita e repetida.

    A desafectação da forma e de estilo que utilizas nesta e noutras histórias com que nos vais brindando são o melhor meio de transmissão para interessares novos leitores.

    Um abraço amigo

    Vasco A. R. da Gama

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