terça-feira, 1 de junho de 2010

M 257 - SÓ AREIA E PEDRAS EM URNA DE EX-MILITAR


Viúva vela caixão vazio durante 42 anos
Deveria ser o corpo de um combatente, mas era só areia e roupa.

Confesso que esta notícia, que jornais nacionais e serviços noticiosos da nossa televisão referiram nos últimos dias de Maio ,me perturbou bastante.
A “quente” a primeira reacção que tive foi a de que isto não é um engano. Isto é um crime!
Depois tentei, já mais a “frio”, interrogar-me: como devo equacionar este problema? Como maior de 60 anos que sou ou... voltar a trás, e olhar para a questão como se tivesse vinte e poucos anos… A idade que tinha quando cumpri serviço militar no Ultramar. No meu caso 1964-66 na Guiné , no caso do rapaz de Atouguia da Baleia- Peniche 1965-67, em Angola.
Fui Enfermeiro de Guerra e convivi algumas vezes com a morte. “Enfermeiro de guerra” porque estive no mato e entrei em mais de 50 operações militares que deram origem a tiroteios, com mortos e feridos. Os nossos 3 mortos (da C.Caç.675) foram evacuados por meios aéreos para Bissau e desde sempre pensei que os seus corpos repousam nos cemitérios das terras da sua naturalidade. Com direito a luto e última homenagem dos seus familiares e amigos.
Depois estive envolvido na recuperação dos corpos de vários soldados que morreram num acidente de barco durante uma operação militar no Rio Cacheu (Norte da Guiné).
A tragédia do Pelotão de Morteiros 980 afectou-me particularmente pois «calhou-me na sorte» a recuperação dos corpos dos seus mortos.
Poucos dias depois da operação de 5 de Janeiro de 1965 apareceram a boiar no rio Cacheu , perto de Binta ,cinco corpos.
Foram recuperados pela nossa tropa e, como Furriel Enfermeiro, tive que me ocupar dos seus restos, nomeadamente no que diz respeito à recolha de objectos pessoais que servissem para a sua identificação posterior.
Objectos pessoais nos bolsos das calças(uma navalha, um espelho de mão) e outras pequenas coisas que já não consigo recordar.
O que nunca mais vou esquecer é que a maioria dos corpos tinham apenas as pernas e um pedaço do tronco, com algumas costelas à vista.
Uns dias no fundo do rio e a presença de jacarés explicava o estado em que nos tinham aparecido os corpos daqueles camaradas.
Os seus restos mortais foram removidos para Farim(sede do Batalhão 490) a que pertencia o Pelotão de Morteiros 980, com excepção de um militar, que ajudei a enterrar a Sul do nosso aquartelamento, tendo ficado a sua identificação (?) numa garrafa dentro do improvisado caixão com que foi sepultado. Senti necessidade da interrogação (?) pois fui então eu que tive a responsabilidade de preencher o documento que ficaria na garrafa para efeitos de identificação no caso do corpo vir a ser exumado mais tarde. Será que ficou o nome do militar ou apenas a data do acidente e o número da unidade a que pertencia? Não consigo recordar-me!

Mais tarde, pela consulta do livro «Mortos em Campanha», Tomo II – Guiné-Livro 1 da Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), vim a saber a identificação de todos eles.
Vou aqui recordar aquele que ajudei a enterrar e o nome dos três militares cujos corpos não mais voltaram a aparecer.

#João Jota da Costa, soldado nº. 3021/63. Está sepultado no Cemitério a Sul de Binta – Margem esquerda do Rio Cacheu.
Observações- Sepultado pela tripulação da LDG «Orion».

Como já referi anteriormente não consigo recordar porque é que o João Costa ficou sepultado junto a Binta e não foi também removido para a Sede do Batalhão. Passaram 45 anos…Mas recordo o caixão improvisado e a “espécie” de funeral que lhe fizemos, com honras militares.
Não voltaram a aparecer três corpos de militares que eram naturais de Torrão-Alcácer do Sal, Santa Maria-Viseu e Freixomil-Giimarães.

#António José Patronilho Ferreira, soldado nº. 2143/63.Natural da de Torrão, Alcácer do Sal. Corpo não recuperado.
#António Maria Ferreira, soldado nº. 3029/63.Natural de Santa Maria-Viseu. Corpo não recuperado.
#João Machado, Soldado nº. 2143/63, natural de Freixomil, Guimarães. Corpo não recuperado.

Saltando agora no tempo ,e assumindo-me como maior de 60 anos, interrogo-me.
Não teria ajudado o luto dos seus familiares terem então recebido três caixões com areia e pedras ? Como terão reagido à notícia morte dos seus e posterior informação de que os seus corpos tinham desaparecido num rio de África, infestado de crocodilos ?
Voltando ao militar de vinte e poucos anos que fui na Guiné não me imagino a carregar de pedras e areia um caixão para a família de um camarada.
Mas como fizeram luto as suas famílias?
Voltando ao militar de Atouguia da Baleia que morreu por acidente em Angola em 1967.
Um seu ex-camarada referiu ,depois da primeira notícia de 27 de Maio último, que se lembrava de ter visto o seu corpo dentro do caixão,ainda em Angola.
O que terá acontecido para 42 anos depois se encontrar na cova aberta do cemitério de Atouguia(para enterrar a sua viúva) um caixão de chumbo com pedras e areia dentro?
Um engano? Mas porquê areias e pedras?
Referi anteriormente o caso dos militares afogados cujos corpos não voltaram aparecer. Também houve mortos -ao longo de 13 anos de guerra – em viaturas incendiadas por terem accionado minas anti-carro ou por outras razões de que terão restado apenas cinzas ou pouco mais!?
Nestes casos o que se meteu nos caixões para o regresso à Metrópole ?
Julgo que será impossível responder a esta e a outras questões idênticas.
Quarenta e tal anos depois li opiniões sobre este assunto que asseguravam convictamente:
«Todos temos que aceitar as dores que nos aparecem. Em minha opinião é mais fácil uma verdade difícil, do que uma mentira piedosa .Num caso deste preferia saber que houve um desaparecimento do que andar 42 anos a chorar em cima de uma campa de pedras e areia.»
É uma opinião respeitável…mas que não é a minha.
Ainda não fui capaz de esquecer a tragédia do Pelotão de Morteiros 980.

Não voltaram a aparecer três corpos de militares que eram naturais de Torrão-Alcácer do Sal, Santa Maria-Viseu e Freixomil-Guimarães.

Será que os seus familiares não teriam preferido fazer o seu luto em campas de cemitérios com caixões vazios mas..."carregados" das memóras dos seus?Carregados com… as suas saudades?
Nunca o saberemos…
A única certeza é que para exorcizar definitivamente os fantasmas da guerra do Ultramar vai ser preciso ainda passar muito tempo.
JERO

4 comentários:

  1. Olá Zé, eu nasci no ano em que o meu amigo foi para a Guiné lutar pela nossa Pátria.Os fantasmas da guerra do ultramar dificilmente ficarão longe porque, cada um de nós, teve um familiar a lutar por algo que, devido aos interesses de alguns, se deu de mão beijada.
    Dificilmente consigo imaginar a dor dos filhos que, ao tentar enterrar a mãe junto do pai, descobrem que viveram uma farsa durante mais de 40 anos. Agora, é voltar a fazer o luto!
    Mas havia pelo menos um local onde chorar o ente querido. De outra forma, talvez fosse pairando a dúvida se ele teria ou não morrido e seria uma agonia para toda a familia. Ficaria sempre a esperança que se tivesse salvo e que poderia regressar.
    A viúva acabou por fazer o seu luto, teve uma imagem onde chorar e morreu na ignorância deste facto

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  2. Sabes meu caro Jero a minha opinião que já expressei e julgo coincide com a tua!

    Nada mais dificil do que viver em "sebastianismo"!

    Um abraço do
    ~Joaquim

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  3. Até certo ponto concordo com o Joaquim, embora neste caso concreto, em que havia corpo, segundo testemunhos, seja dificil encontrar explicações.
    Vou resumir um caso que poderá tornar algo semelhante em explicável:
    Nos paiois de uma unidade estão de sentinela e guarda dois soldados e um cabo, noite, de repente desaba sobre a zona um temporal daqueles que só se vêm em África. Um raio atinge em cheio o paiol, enorme explosão e o paiol volatiza-se e tudo o que estava dentro e em redor desaparece. Os corpos dos três militares são enviados para a Metrópole, em caixões devidamente selados e etiquetados... mas quais corpos?
    Caso veridico.
    Um abraço
    A. Justiça

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  4. Caro Alfredo e Joaquim
    Agradeço os vossos comentários.
    A história do Alfredo é dramática e dá que pensar.
    Tive hoje mais uma achega à questão que ...pode ser "lenda" ou talvez não...
    Em determinada altura,em Angola, acabaram-se os caixões e...não havia câmaras frigoríficas para conservar corpos.O que se fazia? Enterravam-se provisoriamente no cemitério mais próximo.Quando havia caixões e ordens para a transladação ia-se desenterrar o corpo e...se não se encontrava à primeira ...enchia-se o caixão com areia e pedras.São memórias dos anos 60 e 70!!!
    Um abraço camaradas e temos que carregar com o passado...Quer se queira quer não.
    JERO

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