quarta-feira, 2 de junho de 2010

M 258-APRENDIZES DA VIDA DURA

A Aprendizagem dos ofícios na Alcobaça do século XIX
O atraso histórico português em matéria industrial favoreceu a longevidade dos ofícios mecânicos, assim como consentiu que as condições de acesso à profissão pouco ou nada se alterassem com o fluir do tempo.
De facto, as dezasseis escrituras de aprendizagem levantadas entre 1821 e 1879 nos notariais alcobacenses replicam na íntegra os actos realizados no período medieval e moderno, sem que a extinção do instituto corporativo por decreto de 7 de Maio de 1834 tenha interferido no clausulado contratual.

A aprendizagem de um ofício podia começar de tenra idade, quando a força, a destreza e o raciocínio consentiam ingressar no mundo do trabalho de sol a sol, mas em cerca de metade dos registos compulsados os aprendizes já tinha alcançado a maioridade.
A precocidade da aprendizagem verifica-se no ofício de sapateiro e funileiro, enquanto os futuros oficiais de carpinteiro, ferreiro, serralheiro e pedreiro só procuram alcançar uma profissão em idade maior. Esta adesão tardia pode explicar-se como resultado da emancipação do poder paternal e de uma tentativa de fuga ao trabalho de jornaleiro na lavoura.
A duração da aprendizagem variava consoante o grau de exigência da iniciação e formação profissional, sendo, porventura, tida em consideração a idade do aprendiz, a perfeição esperada no mester, e a própria capacidade de negociação do contrato entre o próprio ou representantes e o mestre. No ofício de sapateiro a temporalidade do aprendizado estava compreendida entre os dois anos e os três anos e meio, no de carpinteiro (quatro a cinco anos), de funileiro (quatro a cinco anos), de ferreiro (quatro anos), de pedreiro (quatro anos) e de serralheiro (quatro anos).
No final dos anos estipulados o mestre tinha de dar o aprendiz como pronto e capaz de exercer o respectivo ofício. Mas os contratos envolviam garantias e responsabilidades mútuas. O mestre seria ressarcido das faltas do aprendiz à razão de 200 réis diários, exceptuando motivos maiores, como a chamada para cumprimento de serviço militar e doença incapacitante. As faltas por doença implicavam, em princípio, a reposição dos dias de trabalho perdidos. Apenas uma escritura de aprendizagem de serralheiro rejeita liminarmente qualquer compensação em caso de abandono se for comprovado mau tratamento. Já o mestre seria obrigado a indemnizar o aprendiz ou seus representantes com idêntica quantia de 200 réis diários, em caso de resolução unilateral do contrato ou se, ao termo do mesmo, o aprendiz não estivesse apto para a profissão. Este valor pecuniário só deixaria de ser pago quando o aprendiz cumprisse todos os requisitos para se tornar num oficial autónomo.
Em cerca de um terço dos contratos analisados o mestre recebia uma determinada quantia em dinheiro como contribuição pelo seu ensino, despesas com a manutenção do aprendiz e eventuais estragos de material decorrentes da situação de aprendizagem. As importâncias auferidas variavam, provavelmente, consoante a condição económica da família do aprendiz, as exigências do mestre e o valor estimado do mester. Nos actos que não envolviam contrapartidas financeiras subentende-se que o mestre se considerava satisfeito com o trabalho que o aprendiz iria realizar a seu benefício. Como é óbvio, a duração contratual excedia a necessidade de formação do aprendiz, pelo que o mestre garantia o serviço de um oficial de facto, embora não de direito, por um período dilatado sem que este auferisse qualquer jornal.
Ao mestre incumbia dar pensão ou hospedaria ao aprendiz. Esta obrigação consistia concretamente em dar cama, alimentação e vestuário. O aprendiz vivia portanto com o mestre ao longo de todo o contrato, não se prevendo visitas à casa paterna, o que poderia ser facilmente resolvido em caso de proximidade. Este afastamento forçado aliado ao trabalho intenso e a um mestre demasiado rigoroso explica o risco anunciado de evasão do aprendiz.
Apenas em dois contratos do ofício de carpinteiro se permitia libertar os aprendizes aos Domingos e dias santificados, salvo em caso do mestre necessitar da sua mão-de-obra, correndo então a seu encargo a ”comida e bebida”. Assinale-se, contudo, que nestes dois contratos os aprendizes já são homens feitos. O costume da interdição de trabalho nos dias santificados não era respeitado pelos mestres, o que obrigava a que alguns contratos consignassem essa vontade no respectivo clausulado.
O mestre podia isentar-se do dever de alimentar, vestir e calçar concedendo ao aprendiz uma determinada parcela da soldada. Alguns contratos destacam a obrigação do mestre em dar ao aprendiz sapatos e meias, ou, numa fórmula repetida, fornecer-lhe o necessário do “joelho para baixo”, assim como dar-lhe roupa e remendá-la, chegando mesmo um contrato a precisar que o aprendiz deve trazer os remendos para o seu fato. Quando o mestre se furta a vestir o aprendiz pode, todavia, consentir que “nas horas de descanso (o aprendiz) possa trabalhar para ajuda do seu vestuário”. Compete ainda ao mestre zelar pela higiene do aprendiz cuidando que se lave, assim como mandando-o lavar a sua própria roupa.
A submissão do aprendiz à vontade do mestre é explicitada nas escrituras. Repete-se que “será sempre obediente ao mestre, cumprindo fielmente as ordens que d’elle receber com relação ao ensino e trabalho no officio”. Verificava-se, de facto, uma alienação consentida do poder paternal, mas esta transferência de tutela não se fazia, por vezes, sem registar algumas advertências e pedidos, como a de tentar acautelar o bom trato ao filho que abandonava temporariamente o lar.
Para além da atribuição primeira de formar profissionalmente o aprendiz, o mestre era incumbido de cuidar da sua educação/socialização, ampará-lo na doença, conduzindo-o ao hospital em caso de necessidade, amenizar o trabalho e os eventuais castigos com um pouco de afecto paternal.

António Valério Maduro

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