Corpo
a corpo
A guerra acabou
há décadas.
Reporto-me à Guerra do Ultramar ou Guerra Colonial, que decorreu
entre 1961 e 1974.
Para os mais “antigos” – que é o meu caso (1964-66) –
já lá vai quase meio século.
Apesar de todo esse tempo decorrido ainda há histórias
(ou memórias) que ainda não foram
contadas. E –arrisco dizê-lo – haverá histórias(ou memórias) que nunca serão
contadas.
Estou a pensar, obviamente , pela minha cabeça mas acredito que
não estarei só nessas recordações
complicadas que desde então se agarraram à nossa pele (ou à nossa alma) e
permanecem…
Vou hoje fazer a catarse de uma dessas.
Bem complicada
e que não é fácil de passar ao papel. Mas, já que comecei, vamos aos factos.
Quem esteve na guerra teve situações em que era matar
ou morrer. Porque guerra não é um jogo de xadrez, que permite “xeque-mate” .
Na
guerra há sangue, há gritos, há medo. E ficam fantasmas …e memórias dolorosas.
No teatro de
guerra onde estive – Guiné – onde enfrentámos uma guerra de emboscadas, de
“mata e foge” …raramente víamos quem nos atacava.
A guerrilha tinha as suas
“regras” e raramente encarávamos – olhos nos olhos – quem disparava contra nós.
Uma luta corpo a corpo era quase impensável mas …aconteceu por onde andei.
Numa emboscada montada pela nossa tropa o sangue frio
do Alferes ,que comandou a operação, deixou que o grupo inimigo se aproximasse
a pequena distância para então, e após a sua ordem de “fogo” ,o ter desbaratado
completamente.
Houve tiros a poucos metros do IN (abreviatura de
“inimigo”) e chegou-se a combater corpo o corpo.
O soldado Cardoso(nome
fictício), por se ter encravado a sua arma, matou à coronhada um dos terroristas e
retirou-lhe a sua P.M.(pistola metralhadora).
Foram abatidos
uns 5 “ turras” e capturadas, entre diverso armamento, duas pistolas
metralhadores Thompson, daquelas que conhecíamos dos filmes americanos de
gangsteres.
Tempos depois e passada a euforia do momento começaram
a constar alguns pormenores “falados à boca pequena”… no “universo” muito limitado
do quartel.
O Cardoso não tinha disparado a sua arma porque não quisera e matou
o inimigo à coronhada porque era um “sanguinário”.
Sendo um trabalhador infatigável no quartel e um
aguerrido combatente no mato era, no entanto, um homem estranho. O Cardoso – no
quartel ou no mato – tratava tudo “à
bruta”.
É caso para dizer que ,felizmente, estava do nosso lado…
E há também que referir que foi distinguido e
condecorado pela sua contribuição no sucesso militar da tal emboscada que
abateu inimigos e permitiu capturar armas.
Em circunstâncias que já não consigo recordar ao
pormenor fomos protagonistas de uma cena caricata, com um final “animalesco”.
Quando progredíamos numa zona de floresta cruzámos com uma cabra do mato e suas
crias. Não me recordo se houve ou não tiros. Sei que momentos depois deste encontro
inesperado me vi nos braços com uma assustada cabrinha do mato. Tentei salvar o
“bicho” e levá-lo para o quartel mas não consegui acalmá-lo.
A cabrinha começou
a balir e comecei a não ter mãos para levar a bolsa de enfermeiro, a arma e o
pequeno mas irrequieto animal.
O Cardoso aproximou-se e disse-me:- Meu Furriel,
dê cá a cabra que eu trato dela.
Assim fiz convencido que o Cardoso, com a sua
experiência do mundo rural donde era proveniente, iria acalmar o animal e levá-lo
para o quartel para o criarmos.
Estava redondamente enganado.
O Cardoso agarrou o
animal com as duas mãos e mandou-o violentamente para o chão.
Ainda me lembro
do berro da cabrinha e dos seus olhos saltarem da cabeça.
O que disse já não
sei, mas sei que não mais esqueci esta cena de bestialidade. O Cardoso seguiu
na patrulha como se nada se tivesse passado.
No nosso dia a dia no quartel era raro o dia em que não
houvesse, à tarde, um jogo de futebol.
Mantinha-nos ocupados e era bom para a
forma física. Havia os predestinados e os outros …
O Cardoso era destes últimos. Era esforçado mas um
“nabo” a jogar a bola. Eu jogava a defesa-central, e, modéstia à parte, “metia
no bolso” o Cardoso sem dificuldades de maior. Reconheço que não era “meigo” a
defender e numa jogada em que o Cardoso me passou por perto “dei-lhe com força”.
E não passou… “nem a bola nem o homem”.
O Cardoso cresceu para mim e, de cabeça
perdida, ameaçou-me de morte. Foi um momento tenso que alguns camaradas
ajudaram a ultrapassar.
O Cardoso abandonou o jogo a coxear e a remoer ameaças.
Ainda faltavam uns meses para o final da comissão e não
esqueci o ódio do Cardoso nesse momento do jogo de futebol em que entrei às
suas pernas… “a matar”.
Dali para a frente em todas as operações em que participava e onde ia o Cardoso integrado no
seu pelotão eu tinha uma preocupação acrescida. “Um olho no burro e outro no
cigano”.
Porque já então
se ouviam falar de histórias em que um “tiro perdido” calhava a um superior ...
Refiro-me a patentes, está claro.
Nunca confessei a ninguém esta minha
preocupação “particular”.
A comissão acabou e…regressámos os dois.
O Cardoso(nome
fictício) só muitos anos depois apareceu num convívio da Companhia. Apareceu e fiquei
com a sensação que…ficou isolado!
O tempo não parou. Passaram todos estes anos ...
Ainda não esqueci a expressão e as palavras de ódio do
Cardoso, quando levou a minha canelada no “tal” jogo de futebol: “Eu mato-o,
meu Furriel”.
Esta é a minha verdade e sei que “não sou o dono da
verdade”.
Posso estar a ser injusto.
Mas, ia jurar, que nesse dia longínquo, na
Guiné, joguei a bola com um assassino.
“Está contada” uma das histórias proibidas…
Há mais uma ou duas mas vão continuar em “arquivo
morto”!
Até um dia…ou talvez não!
JERO
Gostei do desabafo ao fim de tantos anos. Estou certo e convcito que situações dessas, embora não sendo frequentes, iam acontecendo e, quem sabe, se algumas com fim trágicos. Mas também penso que se houvesse tempo e condições para se fazer uma selecção do pessoal muitas dessas situações posivelmente teriam sido evitadas. Apuravam tudo e mais alguma coisa. Eu tive o caso dum conhecido que foi apurado porque a tropa era aquilo que era. Era escriturário. Passava os dias dormir à secretária e a babar-se todo. Veio evacuado ao fim de 6 meses. Mas se tivesse havido a tal selecção, não tinha ido. É certo que não fazia mal a uma mosca quando estava são. Mas são é que eles estava poucas vezes já que o alccol era fácil. Gostei do desabafo ao fim de tantos anos. Um abraço
ResponderEliminarCarlos Pinheiro
Parabens pelo Blogue que não conhecia. Vou começar a ser "freguês!.
ResponderEliminarUm abraço
Carlos Pinheiro
Obrigado CARLOS. Lá fico com a minha responsabilidade acrescida!Um abraço, JERO.
EliminarPara uma pessoa com a experiência, conhecimentos e gosto pelo que faz, essa da responsabilidade está boa. Um abração.
ResponderEliminarCarlos Pinheiro