quarta-feira, 4 de julho de 2012

M - 425 MEMÓRIAS DA ADOLESCÊNCIA


A mulher que se “matou” à minha frente…
Teria na altura 15 ou 16 anos. 
Frequentava o antigo 5º.ano do Liceu e voltava para casa depois de um dia rotineiro.
 Até a Professora de Inglês nos tinha ameaçado com o “8” habitual – as notas eram então de 0 a 20 – porque não estudávamos nada, porque eras uns cábulas, etc, etc. 
Quando cheguei à ponte junto da casa do Dr.Neves vi muita gente a correr e a gritar. Apressei o passo e quando me foi possível ver alguma coisa tive a surpresa de ver uma jovem mulher que tinha saltado da ponte para o rio.
 Tinha água pela cintura mas caminhava em direcção à represa, para águas mais profundas.Adivinhava-se que era um acto de desespero e que a mulher se queria afogar!
Os minutos seguintes ficaram-me gravados na memória. Até hoje. E já passaram mais de 50 anos.
Toda a gente gritava. Toda a gente apontava para a mulher e esperava que o “outro” fizesse alguma coisa…Eu, miúdo do 5º.ano., perguntava-me porque ninguém fazia nada e…ia arranjando argumentos para não me sentir “culpado”. Afinal estavam ali ao meu lado homens feitos…Era preciso dar um salto de uns 2 a 3 metros de altura para o rio e impedir que a mulher se afogasse. Lentamente a mulher, agora já debaixo da ponte, caminhava para a morte. Mais gritos, mais braços no ar e …ninguém fazia nada. A mulher parou. Só tinha a cabeça fora de água. Parecia não olhar para ninguém.
 E de repente …alguma coisa mudou. Os gritos dirigiam-se agora para um homem que ,vindo de um armazém próximo, com escadas que davam para o rio já estava dentro de água. Os gritos agora eram de entusiasmo e de ânimo. “Força pá. Agarra-a, agarra-a”. O homem, seguindo encostado à margem, aproximou-se rapidamente da mulher e conseguiu agarrá-la, retirando-a da zona mais profunda. Foi um momento emocionante com os “mirones” a aplaudir.
 De um minuto para o outro toda a gente arranjou coragem para dizer que estava mesmo à beira de saltar e que ninguém deixaria a jovem mulher morrer…
 Também fiz qualquer “negócio” comigo mesmo …para me libertar da sensação de culpa.
Falou-se depois que o acto de desespero esteve “ligado” a um desgosto de amor.
 A jovem mulher nunca mais foi a mesma.
 Ficou solteira para a toda a vida e vive sozinha. 
Continuo a vê-la na sua rua, parecendo quase sempre alheada do mundo e a falar sozinha.
 Uma irmã e o cunhado garantem-lhe o sustento.
Vejo-a muitas vezes a dar de comer aos pombos.
 Recentemente tirei-lhe uma fotografia. Nem me viu. Ainda é uma mulher bonita.Com os cabelos completamente brancos. Usa sempre um chapéu.
 Não fala, não vive. 
Continua a olhar para longe.
 Da mesma maneira que a recordo no dia em que saltou para o rio.
Não mais esquecerei aqueles minutos.
 Senti necessidade de escrever esta história de vida. Para lhe pedir desculpa…
 Julgo que o empregado dos armazéns junto ao rio que a salvou…já partiu. Também lhe quero agradecer.
Agarrou-a nesse dia longínquo.
 E já passaram mais de 50 anos. 
Mas a mulher sem o “seu” amor… não mais quis viver.

Amanhã estará no sítio do costume a dar de comer aos pombos.
Bem me apetecia passar por perto e dizer-lhe alguma coisa.
Mas o quê? 
Há-de ocorrer qualquer coisa...
Até sempre!
JERO

2 comentários:

  1. Olá,e boa madrugada.
    Li com muito interesse esta história, muito bem contada, que me prendeu até à ultima palavra.
    História sem um fim feliz,a provar que nem sempre o tempo passando tudo cura. A esta Senhora a vida deu-lhe espinhos, que a dilaceraram irremediávelmente.
    Foi há muito tempo. Apetece-me dizer "ai como era diferente o amor em Portugal..." (parafraseando a ceia dos cardiais)
    Saudações, Dilita.

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  2. Olá Dilita
    Como sabe as madrugadas são o "bom tempo" para se reviver o passado.Agradeço o seu comentário a uma "História conVida" que não é romance de ficção.Antes fosse.
    Até sempre, JERO

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