Nascimento e morte da 1ª República
O pensamento republicano filia-se na corrente esquerdista do vintismo, na ideologia setembrista e como matriz na tríade da liberdade, igualdade e fraternidade proclamada pela Revolução Francesa.
A monarquia, nas palavras de Fernando Rosas, tinha-se tornado um regime inadaptado face às mudanças de finais do século XIX, nomeadamente a industrialização, a urbanização e a terciarização da sociedade.
O Ultimatum Britânico constituiu um momento de vexação colectiva e a partir deste episódio a monarquia constitucional só podia agonizar.
A bem orquestrada campanha republicana acusava a Monarquia de todos os problemas da Nação: incapacidade de assegurar a integridade colonial, essencial, no seu entender, para o ressurgimento de Portugal; da bancarrota económica e financeira; da dívida externa; da balança comercial negativa; da fragilidade das forças armadas; do despesismo clientelar; da falta de educação da população (cerca de 80% de analfabetos), em suma do subdesenvolvimento gritante do país.
O sistema político-partidário (o célebre rotativismo) encontrava-se sem soluções governativas para os graves problemas nacionais.
Os republicanos contestavam o sistema censitário (baseado na tributação) que privava o cidadão comum de direitos políticos perpetuando o liberalismo oligárquico e a própria raiz anti-democrática da monarquia ao colocar hereditariamente no trono um cidadão superior pela dignidade do nascimento e unção divina.
Como bandeiras ideológicas o republicanismo abraça a secularização, o laicismo e o anti-clericalismo.
As primeiras medidas são exemplificativas deste ideário. A ampliação e modernização das funções do Estado de direito provocam as primeiras fontes de litígio com a Igreja.
É o caso da lei de Dezembro de 1910 que torna o casamento civil obrigatório e o Decreto de 18 de Fevereiro de 1911 que declara a obrigatoriedade do registo civil de nascimentos, casamentos e óbitos.
Mas o diferendo maior verifica-se com a lei de 3 de Novembro de 1910 que estabelece o direito ao divórcio e a celebérrima lei da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911.
Com esta lei, Afonso Costa, entre outras medidas, nacionalizava a propriedade da Igreja, proibia o ensino religioso, instituía comissões cultuais a quem competia organizar e fiscalizar o culto, proibia o uso de vestes talares, procissões e outras manifestações religiosas que pudessem alterar a ordem pública... O radicalismo da primeira figura do PRP acaba por lançar o regime emergente em permanentes guerras intestinas.
A promessa tão aclamada do sufrágio universal cai por terra. A explicação republicana é simples. A concessão de voto ao povo iletrado da província dependente dos caciques monárquicos e da influência clerical consubstanciava uma forma de suicídio político para a jovem República. O decreto de14 de Março de 1911 (alargado em 5 de Abril), que revoga a Lei Eleitoral de 1901 (vulgo, a "Ignóbil Porcaria”) concede o direito de voto a todos os portugueses maiores de 21 anos (não especificando o sexo) que saibam ler e escrever, ou que, não o sabendo, sejam chefes de família há mais de um ano. Apenas uma mulher conseguiu romper o cerco e votar, essa mulher foi Carolina Ângelo, militante feminista e republicana.
Para Portugal poder escapar à vertigem da decadência tinha de reformar o seu sistema educativo, alfabetizar o povo e educar as elites. A crença republicana assentava arraiais no poder da Pedagogia e nas virtudes da escola gratuita, laica e obrigatória, como projecto messiânico e civilizacional. Só assim se podia produzir o cidadão e trazer dignidade à sociedade e à Pátria. Para o efeito, criam-se as Escolas Normais para formar professores primários, o ensino técnico, as Universidades de Lisboa e Porto e os Institutos de Agronomia e Veterinária.
A vertente social, a República concede o direito à greve, decreta o descanso semanal obrigatório ao Domingo para todos os assalariados, reduz o horário de trabalho, torna obrigatório (depois de muita discussão parlamentar) o seguro de acidentes de trabalho, o seguro social obrigatório na doença, invalidez e velhice, assim como fomenta a construção de bairros sociais, cozinhas económicas, jardins-escola, asilos.
Mas cedo o PRP envolve-se em lutas fratricidas levando ao seu posterior desmembramento. A separação de águas entre radicais e conservadores coloca a tensão política ao rubro mostrando, de forma nua e crua, que o cadinho republicano é diverso; ao afastamento e marginalização dos intelectuais republicanos desiludidos com a guerrilha político partidária e a abjecta partilha de lugares fazendo do público um direito privado, junta-se o afastamento dos heróis da Rotunda, como Machado dos Santos.
Por seu turno, os apoios conquistados na província vão sofrer uma forte erosão com o polémico decreto de 4 de Maio de 1911 sobre o imposto predial, gravame para a lavoura que leva a que José Eduardo Raposo de Magalhães abandone desiludido o cargo de Governador Civil do Distrito de Leiria.
A República delapida gradualmente a base social de apoio, utilizando punhos de ferro contra a mole de operários e os homens das artes e ofícios que deram o corpo e a alma pela revolução. Aos inimigos tradicionais (monárquicos e clericais) somam-se os republicanos conservadores que pugnam pela reposição da ordem social, o povo urbano que exige melhores condições de vida... A 1ª Grande Guerra vai constituir uma hecatombe e provocar a degenerescência política do regime. Os governos sucedem-se e os problemas sociais e financeiros acumulam-se.
A falta de credibilidade do regime que leva à solução militar e ao advento do Estado Novo. Não se pode falar de II República, como sustenta Amadeu Carvalho Homem, dado que os valores e princípios republicanos estão ausentes da doutrina salazarista ao defender soluções anti-liberais, anti-democráticas e anti-parlamentares, ao impôr o monolitismo das ideias, ao fazer do aparelho de Estado uma estrutura repressiva violando todas as liberdades fundamentais. Como defende Braga da Cruz, o Salazarismo foi na sua essência uma ditadura de governo, administrativa e burocrática.
A democracia plena só foi alcançada a partir do 25 de Abril de 1974. Mas estas conquistas têm obrigatoriamente de ser consolidadas para não vivermos num simulacro de democracia ou numa democracia oligárquica. A ética e valores da República são hoje mais do que necessários, num tempo em que os escândalos públicos se avolumam, as redes clientelares partidárias gangrenam a democracia e a descrença na bondade do regime começa a tomar conta dos cidadãos.
António Valério Maduro