quinta-feira, 9 de setembro de 2010

M 295 - CEM ANOS DEPOIS ... UMA ANÁLISE ECONÓMICA DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA


O distrito de Leiria nas vésperas da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910

Um relativo consenso historiográfico situa na 2ª metade do século XIX as causas do atraso da economia portuguesa, relevando a sua incapacidade em acompanhar os ritmos de modernização tecnológica e de competição nos mercados internacionais. As explicações do fracasso filiam-se tanto em razões de natureza exógena, como nas características endógenas ou estruturais do país. Encontram-se na nefasta relação comercial com a Inglaterra que leva a uma orientação exclusiva da economia para o sector primário, nomeadamente a produção vinhateira, o que obstaculiza o arranque industrial têxtil; na localização periférica do país face à Europa industrializada; no espírito aristocrático das classes dominantes com um grande grau de rejeição do investimento produtivo e da inovação; na mundividência pré-capitalista da sociedade portuguesa; na estrutura fundiária e regime de exploração da terra, acentuando a dificuldade e lentidão das transformações jurídicas e da inovação do sistema produtivo; na escala da economia, nomeadamente a debilidade do mercado interno e do poder de compra das populações; na sangria demográfica para as Américas, em virtude de um mercado de trabalho incapaz de cativar os migrantes rurais; na exiguidade ou subexploração dos recursos naturais, nomeadamente matérias-primas e combustíveis; na falta de oferta de crédito ou numa política de juros incomportavelmente elevada; na má condução da esfera política e, não menos importante, no fraco índice de escolaridade da população (cerca de 75% de analfabetos à entrada da República), entre outros argumentos.
Não obstante os esforços industrializadores que podem ser constatados nos Inquéritos Industriais de 1881 e 1890, no dealbar da 1ª Guerra Mundial 60% da população activa trabalhava na agricultura e a riqueza produzida por este sector duplicava a da economia industrial.
A industrialização era incipiente e ancorava-se em sectores da 1ª vaga. Em 1881, a indústria têxtil representava 55% das unidades fabris e manufactureiras, 53,8% dos operários e 67,6% da energia obtida através da máquina a vapor.. A potência total instalada estava então calculada em 7.052 (CV).
A indústria apresenta-se concentrada em Lisboa e no Porto e nalguns pólos tradicionais, como a Covilhã e a Marinha Grande…, mas a pulverização do tecido industrial constitui a norma. A energia obtida pelas rodas hidráulicas continua a fazer frente à máquina a vapor e a fábrica embora ganhe primazia no ramo industrial vê ainda a produção oficinal e doméstica ocupar 90% da mão-de-obra operária. É verdade que o esforço da Regeneração tinha garantido as acessibilidades e a mobilidade com uma rede de estradas, pontes e ferrovias, facilitado as comunicações com o telégrafo, a livre criação de sociedades anónimas (1867) que contribuíram para reduzir o risco dos investidores, a emergência de um corpo de novas indústrias de 2ª vaga (adubos químicos, em 1884; tintas e vernizes, em 1888; cimentos, a partir da década de 90), uma taxa de crescimento industrial superior à agrícola (2,5% ao ano contra menos de 1% ao ano entre 1851 e 1913). Mas a competitividade nos mercados internacionais estava condicionada ao sector das cortiças (com maior peso em Lisboa e Évora) e conservas de peixe (em Setúbal, Espinho, Ericeira e no Algarve) e o estrangeiro dominava ¼ da renda comercial e industrial. Portugal não conheceu uma revolução industrial à boa maneira inglesa, pautando-se por um arranque tímido e um crescimento difícil.

Migramos agora para o distrito de Leiria.
A dominância do mundo agrário é sufocante.
 A agricultura assume-se como a forma dominante de investimento, de criação de riqueza, de trabalho e as elites regionais continuam a encarar a propriedade como uma fonte de reconhecimento social.
O regime de exploração da terra insiste em privilegiar os contratos de aforamento/arrendamento em detrimento da exploração directa e a maioria destes contratos alicerça-se na longa duração.
 Nota-se ainda uma lentidão extrema na transição das pensões em géneros para moeda (o que demonstra a deficitária monetarização da economia), permanecendo os foros a ser pagos em cereais e vivos.
 Mas não são apenas estes os problemas que tocam a agricultura do distrito.
A deficiência da gestão agrícola materializa-se na promiscuidade e tradicionalismo cultural, na carência de adubação e mobilização do solo, na má regra de plantação e compasso, na dificuldade de aquisição de máquinas e alfaias modernas, em suma, uma agricultura diminuída nos métodos e técnicas, na questão complexa da posse e dimensão da propriedade e dos foros, na capacidade de inovação e na relutância em abraçar o modelo capitalista de exploração da terra.
A revolução liberal e as políticas económicas daí decorrentes não provocaram mudanças substantivas nas relações materiais de produção dos campos.
 É certo que se verificou um relativo desafogo com o desmantelamento gradual das estruturas senhoriais. No relatório da “Sociedade Agrícola do Distrito de Leiria (1856) ” afirma-se que, a partir de 1834, se deu um incremento significativo da cerealicultura no distrito, o que lhe faculta a exportação de aproximadamente um décimo da colheita.
 Este progresso é atribuído pelos lavradores avisados ao seguinte corpo de razões:
“1º Extinção dos dízimos;
 2º Venda dos bens nacionais e sua divizão;
 3º Remissão dos foros;
 4º Aumento da população;
 5º Liberdade e o socego que os povos tem governado com o acabamento da guerra civil”.
Mas aprofundemos a análise.
 A partir da segunda metade do século XIX são tomadas medidas de política agrária que afectam a coabitação de incultos com as áreas de produção.
 A lei de desamortização dos baldios (1869) acelera a destruição da propriedade comunitária, o que no distrito se traduz quer num fenómeno de concentração da propriedade, quer na democratização de acesso à propriedade plena da terra.
 Mas a perda dos baldios traduziu-se em grandes dificuldades para a lavoura campesina que dependia destes espaços para fertilizar as terras de cultivo, conduzindo a atrasos na emancipação global do pousio e opção por novos afolhamentos, levando a quebras acentuadas de produtividade do solo...
Mais ainda, estas terras marginais não eram aptas a culturas cerealíferas revelando um esgotamento precoce.
Articulada com a lei de desamortização temos a abolição do compáscuo decretada com o Código Seabra de 1867, o que limitou o pastoreio itinerante salvaguardando o superior interesse do proprietário como bem mandava a cartilha liberal, mas, em contrapartida, acentuou a fragilidade económica do mundo campesino.
A escassez de pastos naturais e de recursos forraginosos, a fragmentação acentuada da propriedade e a dedicação do solo para amanho travaram a empresa pecuária.
 O distrito não dispunha de criação de gado equino e bovino, o que colocava problemas no fluxo de cargas, na força de tracção disponível e tinha reflexos na dieta alimentar.
 Sem estrumes animais e vegetais o índice de produtividade das terras conhecia um declínio.
O parque florestal vai também conhecer importantes modificações com o termo do Antigo Regime e o advento da sociedade liberal a floresta sustentável dá paulatinamente lugar à floresta industrial.
Verifica-se o declínio das matas de folhosas (arroteamentos agrícolas, derrotes para construção e carvoaria) e altera-se o sistema de exploração (de alto fuste para talhadio).
 Cresce a área de pinhal com maior expressão no litoral e as madeiras de pinho servem de combustível à indústria têxtil, vidreira e cerâmica, exportando-se por via marítima ou através do comboio os excedentes produtivos.
 A indústria de resinagem conhece um importante incremento no distrito (no ocaso do século XIX sangraram-se 400.000 árvores nos concelhos de Alcobaça e Leiria).
No domínio da cerealicultura a novidade aporta com o prolífico arroz.
O arroz (cultivavam-se as variedades carolino e galego) impõe-se por meados do século XIX como uma cultura de matriz capitalista, desestruturando as tradicionais relações entre proprietário e rendeiro.
 A cultura do arroz (a par da amoreira) é considerada como uma bênção celestial pelo governador civil de Leiria (1854) face à crise do oídio nas vinhas.
 Verifica-se, então, um notável incremento orizícola nos campos de Leiria, de Alfeizerão e Cela (Alcobaça).
Mas as sezões palúdicas (malária) que atingem os trabalhadores e povoados limítrofes dos arrozais não autorizam a manutenção da cultura. Os arrozais por falta de condições técnicas e de salubridade são proibidos no distrito em 1871.
A propriedade explorada sobre administração directa privilegia o olival e a vinha.
A cultura extensiva do olival é predominante na província da Estremadura (aliás, era nesta província que o olival tinha maior expressão, seguindo-se-lhe as Beiras e o Alentejo).
 No distrito de Leiria a mancha de olival ocupa a Serra de Aire e Candeeiros (o que faz dos concelhos de Alcobaça e Porto de Mós, os maiores produtores).
O olival representa uma das principais fontes de abastança do distrito. Não é por acaso que o Governador Civil D. António de Sousa Macedo declara em 1854 que “um bom anno de azeite produz isto tudo, augmenta os bacelos, acrescenta os lagares, multiplica as charruas, alarga as sementeiras, desenvolve a indústria, emprega a mão-de-obra, dá salário aos trabalhadores".
 Mas este fácies cultural altera-se radicalmente na economia de guerra da primeira confrontação mundial.
A necessidade de combustíveis conduz ao derrote exaustivo de grandes áreas de olival, mas a conjuntura de guerra não é a única responsável pela delapidação deste património.
Também a senilidade das explorações (falta de renovo e de culturas de consociação) conduziam a uma quebra irreversível da produtividade, a que acresce a carência e aumento de custo da mão-de-obra em virtude da emigração.
A vinha vai assumir-se ao termo do século XIX como um sector de inovação e motor da lavoura.
 Mas recuemos um pouco no tempo.
 Ao longo do período da Regeneração a vinha é atingida por sucessivas doenças responsáveis directa e indirectamente por uma verdadeira revolução neste sector.
 O oídio começa a fazer estragos no distrito a partir de 1852 com quebras abruptas na produção.
 Ultrapassada esta crise na década de 60 a cultura vinhateira dispara e os vinhos do distrito passam a abastecer a França que se deparava, a partir de 1863, com a praga da filoxera a devastar a totalidade das vinhas.
 Em 1867 o Douro vinhateiro é atingido, mas o distrito de Leiria só conhece o primeiro foco de infecção em 1882.
 O repovoamento da vinha europeia sobre os bravos americanos faz-se de forma quase imediata no distrito, enquanto no Douro insistiu-se no sulfureto e na replantação de castas europeias.
A filoxera implicou uma verdadeira revolução que se pode sintetizar nos seguintes aspectos: substituição total da vinha de pé-franco pelas americanas; implantação da vinha em solos de várzea; novas regras de compasso, alinhamento e mobilização; exclusão das culturas de consociação; primado da enxertia; importação de castas francesas; adopção de novas alfaias vinhateiras; adubações e tratamentos.
 Os resultados materializaram-se em ganhos de produtividade de cerca de 1/3.
Por seu turno, o fabrico do vinho conhece uma profunda revolução química e mecânica.
 A vinha pós-filoxera ganha grande incremento e o vinho abastece o Brasil e as colónias africanas.
Os mercados europeus nomeadamente o inglês e francês recusam os vinhos portugueses que por serem aguardentados exibem um teor alcoólico demasiado elevado.
Naturalmente, os investimentos de replantação, renovo da maquinaria vinária e o capital de conhecimentos para produzir vinho afastam os camponeses da produção de mercado.
Excluindo as explorações vinhateiras a tecnologia agrícola marca passo. Os lagares de azeite mantêm o arcaísmo tecnológico, com as prensas de vara e os moinhos ultrapassados, o período de entulhamento excessivo, problemas de salubridade, erros de produção (queima e salga do azeite, junção dos azeites das espremeduras...), o que leva à recusa do azeite português no mercado europeu.
A debulha mecânica do trigo divulga-se timidamente nas primeiras décadas do século XX, enquanto no Alentejo as debulhadoras já eram vulgares na década de 80 do século XIX.
 A própria tracção das alfaias continua a ser entregue ao gado bovino. No sul de Portugal, o cavalo já se encarregava desta tarefa a partir do último quartel do século XIX.
Na indústria salva-se o precioso pólo vidreiro da Marinha Grande e a resinagem graças à floresta de pinho.
 O distrito possui todavia unidades de fiação e tecidos (Castanheira de Pêra e Alcobaça), louças (Caldas da Rainha), curtumes, cerâmica, conservas de frutas...
 Nas indústrias extractivas temos em Alcobaça as minas do asfalto, na Batalha as de carvão, e no concelho de Leiria minas de carvão, de lenhite, de ferro, de gesso e de cimento.
Os trabalhos e os dias das populações do distrito de Leiria e a força da economia continua dependente da agricultura, imagem que não destoa do todo nacional.


António Valério Maduro

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