O avô da Matilde, um vizinho especial
Uma das
vantagens de ser avô é poder conhecer através dos nossos netos pessoas que, em
circunstâncias normais, nos passariam “ao lado”.
Nas férias
do mês de Agosto deste ano, em São Martinho do Porto, a minha neta Mariana
começou a brincar com a Matilde e daí até conhecer o seu avô foi um instante.
Nas
primeiras palavras que troquei com o Avô da Matilde adivinhei que estava na
presença de um ex-combatente, o que se confirmou no momento seguinte quando
trocámos nomes, idades e interesses…
Ambos
tínhamos 72 anos e, no nosso passado, a Guiné dizia-nos muita coisa.
O Carlos
Ferreira quando me disse que tinha 2 comissões na Guiné e tinha sido
sargento-chefe paraquedista deixou-me …altamente interessado em cimentar a
nossa relação. Ficou logo combinada uma conversa para mais tarde. E, no
momento, em que passo ao papel estas linhas já tivemos duas ou três conversas, o
que já permite fazer o seu B.I., com os seus dados militares.
Carlos
Herculano da Silva Ferreira nasceu em Braga em 16 de Dezembro de 1940. Em 4
Maio de 1961, com quase 20 anos e meio, assentou praça na Escola do BA 3-
Tancos. Frequentou o 14º. Curso de paraquedistas e foi “brevetado” em Julho
desse ano.
Nos meses seguintes está envolvido em diversas ”diligências”, sendo
colocado em Monsanto “para fazer guarda às antenas”, que tinham um papel
importante nas comunicações com as nossas províncias ultramarinas. A guerra já
tinha então começado em Angola (Fevereiro de 1961).
Regressa a
Tancos em 1962 e em 1963 é mobilizado para a Guiné.
Viaja de Tancos para Bissau
num “Skymaster”, integrado de um contingente de cerca de 50 paraquedistas.
Chega
à Guiné em Junho de 1963 e em meados de Janeiro de 1964 integra as primeiras
tropas da “Operação Tridente”, que invadem a Ilha do COMO.
Permanece no Como
até ao final operação, que termina em 22 de Março.
E continua na Guiné até
Agosto de 1964.
Era então
soldado-paraquedista e chefe de equipa.
Regressa à Metrópole
e casa em Janeiro de 1965.Frequenta em Tancos o curso de Sargentos.
Em Setembro
de 1967, já então como Furriel, segue para Angola, onde cumpre mais uma
comissão, até Novembro de 1969 (1ª.Companhia 121).
Mais um
regresso a Tancos onde vai permanecer até inícios do ano de 1972.Durante esse
período colabora na instrução de 14 “cursos de combate”. Passam-lhe “pelas
mãos” centenas de paraquedistas.
Em Fevereiro
de 1972 segue de novo para a Guiné em rendição individual. Foi substituir o
Furriel Pires, de Setúbal, morto em combate. Cumpre uma comissão muita dura,
que vai prolongar-se até 28 de Março de 1974.
Integra muitas operações, passando
por Guidage, integrado no 2º.Pelotão da Companhia 112, onde tiveram 4 mortos.
Regressa à
Metrópole a tempo de “apanhar” a Revolução de Abril.
Estava colocado em Tancos
quando, em 25 de Abril, é chamado para integrar um grupo de paraquedistas que
,entre várias operações, têm “responsabilidades” junto da sede da PIDE e na
prisão de Caxias.
Encontra então nessa prisão um alto funcionário da Pide que tinha
conhecido em Bissau durante a sua última comissão na Guiné.
Segue depois
para a segurança do Aeroporto de Lisboa, onde está em serviço durante algumas
semanas.
Mais um regresso a Tancos e, passado algum tempo, é chamado para
próximo do General António Spínola.
Presta serviço na Presidência da República
de 1974 a 1977. Em 1979 faz o Curso de Sargento-Chefe e é colocado em Monsanto.
Passa à reforma em Fevereiro de 1988.
E,à
distância no tempo, o que mais o marcou nas suas 2 comissões na Guiné!?
Em relação à
primeira comissão ainda hoje recorda as más condições da sua estadia inicial em
Bissau.
Foram 29 dias a dormir no chão debaixo de um alpendre com telhado de
zinco. Foi um período em que quase deu em doido e que lhe valeram 10 dias de
prisão… «Um cabo de serviço embirrou comigo, saltou-me a “tampa” e ofendi-lhe a
mãe». A “porrada” foi despenalizada mas não deixou de a apanhar. «Depois a vida
dá muitas voltas e um dia, durante uma operação no mato, tive que o carregar às
costas.»
Depois, em Janeiro de 1964,
fez parte do pelotão de paraquedistas que integrou os mais de 1.000 homens que
fizeram parte do contingente da Operação Tridente, para a recuperação da soberania da Ilha
do Como , ocupada pelo PAIGC desde 1963.
Foram dias
muito duros. À distância no tempo recorda um momento para o qual ainda hoje –
tantos anos passados - ainda não
encontra uma “boa explicação”.
Já estava
no Como há 2 ou 3 dias quando integrou uma “coluna” para entrar no “mato”.Com a
floresta à vista - deslocavam-se “em
bicha de pirilau em cima do “separador” da bolanha - e as uns 30 metros da mata
ouviu um barulho suspeito. «Era o 4º. da fila e vi um “vigia” deles saltar de
uma árvore. Logo a seguir aparece um tipo, fardado de caqui, que nos faz um
sinal de “alto”.»
Logo após o
salto do“vigia” ficámos no chão e pedimos pela rádio apoio de fogo de morteiro.
O inimigo desapareceu e as nossas tropas recuaram.
Que quis
dizer aquele gesto de “alto” !?
Não quiseram fazer fogo, não queriam guerra ?
Tinham a “surpresa” do lado deles e não a aproveitaram.
Ainda hoje,
48 anos passados, a cena não se apagou da “sua cabeça” e o enigma mantém-se.
Em relação
à “Operação Tridente” não se pronuncia pois a sua crónica está contada e ao
tempo - não teve tempo nem espaço, nem informação – que valha a pena
acrescentar mais alguma coisa ao que está escrito e …já passou à história.
Quanto à
segunda comissão ,que como já foi referido cumpriu em rendição individual, prolongou-se de Fevereiro de
1972 até 28 de Março de 1974.
Das muitas
operações em que esteve envolvido recorda especialmente a invasão do Cantanhez.
«A minha
Companhia estava em Teixeira Pinto e
veio para Bissau para preparar a operação. Na data prevista fomos
hélio-transportados até à orla da Mata do Cantanhez.
Fui o primeiro militar do
primeiro “heli” a saltar.
Era então 2º. Sargento e o meu chefe directo era o Alferes Silva, que é hoje Coronel.
A nossa
missão consistia em limpar a área para se montar um aquartelamento.
Estivemos
vários dias na zona e fomos atacados durante uma noite. Ao fim de 3 dias o
“Caco Baldé” aparece lá e vai falar com o Comandante de Companhia, o Capitão
Augusto Martins, que chegou a General.»
Mandaram-se
chamar ao Comando porque o General Spínola queria conhecer a mata. «Foi comigo
e fomos sempre a falar. No final da visita deu-me os seus parabéns e disse-me
que tinha gostado de me conhecer.»
«Foi para
mim um dia e uma ocasião muito especial. Que não mais esqueci.»
Ficámos um mês no Cantanhez.
Tempos
depois, numa operação na zona de Babadinca, fomos sobrevoados por um
helicóptero.
Para meu espanto o “héli” baixou e veio aterrar perto dos meus
homens.
O “Caco” vinha a bordo e ,quando me aproximei, perguntou-me se estava
tudo bem e se era preciso alguma coisa. Reagi de imediato e pedi-lhe: «Meu
General vá-se embora, que me dá cabo da operação.»
- «Se
precisares de alguma coisa chama». Acenou-me com o bengali e o “héli”afastou-se.
«Nunca mais
esqueci o momento».
«Deixo para
o fim a recordação de uma ocasião muito dolorosa e marcante.Um dos meus homens
– o 1º.Cabo Melo – ganhou o Prémio Governador da Guiné e teve direito a um
período de férias no Continente. Podia ter vindo para Bissau para apanhar o
avião para Lisboa mas fez questão de entrar numa operação comigo, porque sabia
que fazia falta. Nessa operação foi morto em combate. Em Junho de 1973.
Foi o maior
desgosto da minha vida de militar. Andei 8 dias bêbado.»
À distância
no tempo…o Avô da Matilde emociona-se e cala-se.
Mais tarde
diz-me que lhe fez bem falar.
Daqui para a
frente sempre que for a São Martinho do Porto vou tocar à campainha do
apartamento do Sargento-Chefe Carlos Ferreira.
Um vizinho especial.
JERO
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