ANIMA EST PLUS QUAM CORPUS
A alma é a vida eterna.
A alma emana do corpo, a parte perecível do homem. Daí que os rituais funerários estejam envolvidos num objectivo transcendente de um outro mundo.
A vida é um fragmento transitório para o patamar da eternidade imaterial. Da vida terrena ficará a memória guardada pelos vivos. O culto dos mortos nas diversas culturas é sempre uma tentativa de perenidade, um repositório de lembrança.
Os nossos cemitérios são justamente um território de memória, uma tentativa última de lembrança dos corpos, com os quais convivemos.
A intervenção artística é um dos caminhos seguidos pelos vivos para atenuar o esquecimento, muitas vezes o seu próprio abandono pela memória dos vivos.
Os mausoléus superam as campas rasas , as arcas tumulares coroam a transcendência da passagem redimensionando a mensagem da morte.
Pedro, no seu tormento pela bárbara sentença que lhe levou Inês, solucionou a dor da vida no ritual assombroso do caminho para a eternidade.
Os túmulos, as arcas funerárias são um sinal tentado da perenidade da memória colocados sob o acolhimento do espaço mais próximo da protecção divina, a Igreja do Mosteiro e o seu Cenóbio Cisterciense.
Teria de ser contado o caminho da vida de Pedro, o caminho da vida de Inês. Teria de ser explicada a razão da construção da memória tumular; Fernão Lopes na sua crónica de D.Pedro assinala o desiderato do Rei “porque semelhante amor (…) é tão verdadeiramente achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço do tempo (…).”
No painel da cabeceira do túmulo do Rei sob a sua cabeça está a razão última dos monumentos funerários.
Em 1386 consuma-se a memória da vida conjugal na escultura notável da roda controlada pela sorte, pela fortuna, a caprichosa divindade mitológica que controla a felicidade e d desgraça dos pobres mortais.
A divina donzela segura o “eixo” da roda soltando-o a seu prazer. No túmulo de Pedro a fortuna não tem os olhos vendados, nem segura uma cornucópia como nas representações humanas.
O que a torna aqui mais consciente das suas decisões durante a vida de Pedro com Inês o destino que dá o destino que retira.
Concentra-se no indelével registo da vida amorosa dos defuntos “Príncipes” amantes. Rei destemperado, sentença cruel, bárbara execução da mãe dos filhos de Pedro. O avô intransigente, o rei “viúvo” vingando a afronta agora de lesa-majestade por Inês ser rainha.
A história que se pretende legar à memória dos vivos está nesta roda controlada pela “mulher destino” ,que emana de um ser estranho para controlar a vida de um rei bárbaro e da sua sedutora rainha morta.
Esta história real ultrapassa a de Abelardo e Heloisa e outras de raiz medieval por ser mais claramente trágica, por ser arrebatadora quando olhada no seu conjunto, quando compreendida no seu contexto.
Sugiro aos nossos leitores uma visita à igreja gótica de Alcobaça e a dois demorados olhares, um à roda da cabeceira de Pedro, outro ao jacente de Inês.
No primeiro olhar a vida tal qual Pedro a quis contar, no segundo olhar Inês no esplendor de mulher amada tal qual Pedro desejou que a víssemos.
O que na vida se faz pela impotência perante o seu fim é verdadeiramente extraordinário.
Aclame-se então a morte com a comemoração da vida, ficamos muito mais contentes e julgamos ludibriar a Fortuna.
É esta a lição dos túmulos de Pedro e Inês. Perante a morte erga-se o coração dos vivos.
Rui Rasquilho.
Vou de vez em quando à Batalha.Toda aquela arte tem sempre algo de novo,em que eu ainda não tinha reparado na anterior vizita.
ResponderEliminarGostei imenso deste seu texto.Não são só os restos mortais de dois seres apaixonados e infelizes, que ali repousam. O seu texto é bem exclarecedor.Li com atenção e muito interesse.E fiquei a saber mais.
Saudações.
Dilita.
Voltei para corrijir um lapso. Não devia ter escrito Batalha, mas sim Alcobaça. Os dois monumentos me encantam, e ambos visito, daí ter-me "baralhado"...
ResponderEliminarMas recuperei a tempo, penso eu.