A MEMÓRIA
Entrei pela primeira vez no Mosteiro de Alcobaça na
Primavera de 1945. Confesso que nessa altura não apreciei devidamente a beleza
gótica da Igreja, até porque ia adormecido ao colo da minha mãe.
Creio que acordei na Sala dos Reis quando a água benta me
correu pela cara e talvez tenha chorado perante o trio impassível de Afonso
Henriques, Alexandre III e São Bernardo.
Que não me ligaram nenhuma.
Depois os meus pais, os padrinhos e um, penso eu, pequeno
grupo de amigos, não me lembro de nenhum, voltamos para o patim barroco da
Igreja de onde me disseram havia uma agradável vista sobre um lindíssimo jardim
cheio de relva, bucho, árvores e empedrados, azuis e brancos, tudo
maravilhosamente colocado.
Carros havia muito poucos.
Mas o “oldsmobile” cor de
vinho (um” must”) do meu avô lá estava esperando por nós.
Contaram-me mais tarde
que o senhor Campeão, da Pharmácia, me veio beijar a testa antes de entrarmos
para o carro.
Contaram-me também que houve um almoço lá em casa onde a
grande iguaria, eu diria uma delas, foi uma canja de galinha com pequenos ovos
da dita, e uma pata para dar mais gosto. Que regalou o meu avô Leonardo.
A guerra de 39-45 não terminara e havia ainda racionamento,
mas, lá em casa, no quintal, ali onde o Baça entra no Alcoa, viviam coelhos,
galinhas e patos para além de crescer farta horta.
E haver um forno para coser
pão.
A última vez que entrei no Mosteiro tinha 99 anos e ia
dentro de uma urna de cinzas em ouro, coroada por uma esmeralda, levada pelo
meu bisneto Martim, de 15 anos.
Como imaginam também, por evidentes razões, não pude
apreciar o monumento, mas sei por onde andei, antes de serem lançadas da Torre
Norte, a do relógio mecânico, que sempre me fascinara desde que havia sido
Director do Mosteiro no início do sec. XXI.
Nesse tempo, foram apenas três anos, olhei várias vezes o
edifício para o ver e insisti para que outros o vissem.
Mas a verdade é que
tudo é breve e efémero e que a única coisa a fazer é preservar a memória tão
pura quanto formos capazes de guardar
para a transmitir, para que outros a interpretem a seu saber.
Por nisso não
estraguem, aprendam e trabalhem com cuidado.
Rui Rasquilho
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