Vocês aí a comer e o meu tenente a morrer!
Esta
história “conVida” aconteceu há mais de 50 anos. Mais propriamente ao longo ano
de 1961.
Tem a
ver com o início da guerra em Angola.
Como
disse então o primeiro-ministro Oliveira Salazar “rapidamente e força para
Angola ”.
E
assim aconteceu. O governo da Nação respondeu
prontamente enviando tropas em defesa da Província Ultramarina.
O tenente
de Infantaria Tomé Pinto tinha casado em Janeiro.
Um mês depois foi mobilizado.
Embarcou no “Niassa” integrado no CCaç.129, que pertencia ao Batalhão 155, em
Maio de 1961.
“A alvorada do dia 28 de Maio de 1961 teria sido
igualzinha a tantas outras, não fosse a circunstância de ser o dia previsto
para o segundo grande embarque de tropas
para Angola no N/M NIASSA, a partir do Cais de Alcântara, em Lisboa.”
O “Niassa” abarrotava de militares de farda amarela que, em
12 de Junho, logo após o desembarque em Luanda, desfilaram pelas avenidas da
capital da maior Província do Império Português.
Foi
um desfile emocionante saudado por milhares de civis que aplaudiam as tropas
que marchavam com garbo. Lisboa continuava a mandar tropas para defender Angola.
Os
militares do Batalhão 155 estiveram cerca de um mês em Luanda. Depois de alguma
adaptação aos “ares” de Africa … receberam ordens para seguir para o Norte.
Tinham
como principal missão fazer uma manobra de envolvimento à zona onde tinham
decorrido os duros combates de Nambuangongo.
A
coluna militar incluía viaturas civis pois as do Exercito não chegavam para
transportar o contingente “amarelo”.
“O transporte das
companhias era feito tendo por base jipes Willes MB 4×4 mod. 1944, “jipões”Dodge 4×4 mod. 1948, camiões GMC
6×6 mod. 1952 e Ford mod. Canada 4×4 (rodado simples).
É
oportuno recordar aqui que os militares seguiram armados com “Mauser”. E com
camas desarmadas para montar quando “aquartelassem”.
Seguiram
para a zona do Negage, Quitexe, Songo e Nova Caipemba.
Percorriam
de 200 a 300 Km por dia tentando “apagar fogos”, sempre que era caso disso.
Quando
a noite chegava a coluna estacionava, fazia-se a segurança e dormia-se debaixo
das viaturas.
Um
bocado de capim, coberto por uma lona, servia de colchão.
E
tempo de entrar nesta história o “Marra”, que era o condutor da viatura onde
seguia o nosso jovem tenente Tomé Pinto. Que contava então 25 anos.
O “Marra”,
originário da região de Viseu, era um militar generoso, inteiramente dedicado
ao seu tenente, e com uma razoável dose de “maluqueira congénita”.
Para
ganhar uma ou duas cervejas da “Cuca” era capaz de agarrar os bornes da bateria
da sua viatura com o “seu” carro a trabalhar.
Antes
que caísse para o lado as suas desmioladas façanhas foram “interrompidas” pelo seu
Tenente . Que o recorda com muita saudade e apreço: “era capaz de concertar
qualquer motor”. E fazia a preceito a “cama de capim” do oficial de que era ordenança.
Como
estava organizada a Companhia 129?
Um
capitão (de nome Albuquerque), um tenente (Tomé Pinto), três alferes, sargentos,
cabos e soldados.
E o
inimigo?
Não
se via. De vez em quando uns tiros ao longe e… pouco mais.
A
CCaç. 129 chegou a região de Quizabala, onde se viria a instalar por alguns
meses. Tinha sido nesta região que tinha começado o terrorismo em Angola em
Marco de 1961.
"Em 15
de Março de 1961, um bando de terroristas da UPA (mais tarde denominada FNLA)
chacinaram centenas de portugueses à catanada, homens, mulheres e crianças, da
forma mais vil e cobarde”.
Todas
as pontes estavam destruídas.
Uma
das viaturas da coluna-auto transportava pranchas de ferro que serviam para
“passar” os rios nos locais onde as pontes tinham sido destruídas.
E que
armas tinha o inimigo?
Catanas,
canhangulos, e uma ou outra arma de precisão - “carabinas” herdadas de caçadores
de caça grossa -. Também haveriam algumas pistolas-metralhadoras!
Na
altura já então era lendário um atirador do inimigo, com provas dadas como o temível
caçador de homens. Era conhecido como “o caça alferes” .Vá se lá saber porquê…
O jovem
tenente Tomé Pinto (na actualidade tenente-general, na reserva) recorda uma família
de apelido Poço, da fazenda do mesmo nome, que foi alvo de uma terrível carnificina.
Alguns
elementos da família foram mortos à catanada. Nessa e noutras fazendas da
região crianças, mulheres e homens foram chacinados. Novos e velhos, brancos e pretos, tudo o que mexia…
-“ Os guerrilheiros, nestes primeiros meses de guerra, acreditavam na
ressurreição: mesmo que fossem mortalmente atingidos voltavam a viver – só
morriam se lhes fosse amputada parte importante do corpo. “
A população
nativa tinha desaparecido.
Andavam-se
quilómetros e quilómetros sem ver viva alma.
Mas
sorte diferente teve uma companhia ”irmã” que tinha também embarcado no navio
“Niassa” na viagem iniciada em 28 de Maio de 1961.
Numa deslocação
em zona bastante acidentada, quando os seus homens circulavam numa “picada” no
meio uma floresta fechada, foram atacados a “mão” e as consequências foram terríveis.
Quando
as nossas tropas reagiram a tiro de “Mauser” já muita gente estava seriamente
ferida. Foi um banho de sangue. Quinze dos “nossos” já não responderam à
chamada. Quinze mortos a catanada !
O
inimigo terá tido bastantes baixas depois da reacção da nossa tropa mas a consequências
para a CCaç. 115 foram muito pesadas.
A CCac.
129 continuava a sua acção na zona dos produtores de café e os contactos com o
inimigo continuavam a ser esporádicos.
Um
dia depararam com uma cena macabra numa picada próximo de São José do Encoje (região dos Dembos).
As
nossas tropas encontraram um nativo morto(talvez um ex-trabalhador de uma das
fazendas da região) amarrado a uma cadeira no meio da picada, com um dístico ao
peito: “tugas vão-se embora”.
Enterrou-se o morto e quando regressvam para as viaturas...
ouviu-se um tiro, seguido de algumas rajadas de pistola metralhadora.
Seriam umas 11 horas da manhã.
O tenente
Tomé Pinto que seguia então dentro de um jipão,
com o capitão Albuquerque ,sentiu de repente uma queimadura no rosto.
Quando
levou a mão a face já “tudo” era sangue.
Foi
de imediato assistido no local pelo cabo enfermeiro Leonel.
O aquartelamento
ficava a cerca de 3 horas de caminho.
Começou
aí “o dia mais longo” da vida do jovem tenente Tomé Pinto.
Chegados
ao aquartelamento pediu-se a evacuação do ferido por helicóptero. Mas só havia
um e estava em Luanda, a 850Km de distância. E não estava disponível.
A solução
possível no momento era seguir para o hospital de Carmona (Uíge).
Deitado
numa maca seguiram-se 7 horas de viagem num jipão.
A seu
lado deitaram-se 2 soldados para evitarem que o ferido se mexesse na maca. Esse militares fizeram de “almofadas laterais”
de forma espontânea e voluntaria na “ambulância” improvisada.
.Em Carmona o médico que o atendeu, diagnosticou
uma fractura no maxilar esquerdo e o palatino “furado”.
Já
próximo da cidade de Carmona o tenente Tomé Pinto continuava consciente e com o
seu próprio sangue “escreveu” na lona da maca onde seguia :- “Frio”.
“Aguenta”,
disse o médico da Companhia. “Aguenta”.
A
mensagem – “ frio” - era o prenúncio de estado de choque, um sintoma pouco
animador.
Em
Carmona fizeram-lhe transfusões de sangue, que todos os soldados da CCaç. 129 fizeram
questão de dar.
O
“nosso” tenente recorda-se de, durante a noite, ter visto sempre a volta da sua
cama militares com as espingardas “Mauser” a tiracolo.
Chegou
o dia seguinte e uma boa nova.
Havia
a possibilidade de evacuação de avião para Luanda.
Seguiu
para o Negaje num avião “Tiger”.
Aí
apareceram-lhe um médico e um capelão. Que lhe “ofereceu” a extrema-unção. Com
um sinal de mão deu o seu “ok”.
Com
os seus botões pensou:-Porque não?
Depois
meteram-no num barracão onde ficou só com o cabo enfermeiro Leonel que nunca o
largou. Todo o tempo.
Sentiu
que estava a piorar. Teve uma sensação de abandono. Por sinais pediu ao Leonel
um papel e uma caneta. Sabe que escreveu qualquer coisa de que já não se
lembra. O Leonel ficou assustado e correu esbaforido para a messe dos oficiais.
De cabeça perdida entrou sem pedir licença e gritou: “Estão todos aí a comer e
está o meu tenente a morrer”.
Depois
de um silêncio… vários oficiais levantaram-se e deslocaram-se ao barracão para
ver o ferido. Alguns tinham sido do seu curso na Academia Militar e
reconheceram-no de imediato: “olha o Tomé Pinto”.
As coisas melhoraram.
O Leonel mostrou-lhe mais tarde o papel onde
pensava ter escrito algumas palavras de socorro. Só tinha feito um risco. Não
tinha qualquer palavra escrita.
O
tenente Tomé Pinto resistia a todas as ordens de quem lhe queria mexer nas
feridas do seu rosto. Nem queria morfina para atenuar as dores. Tinha a noção
de que não resistiria se lhe voltassem a mexer na cara. Se as feridas “
abrissem” perderia o resto do seu sangue. As horas iam passando lentamente…
E lá chegaram os dois aviões “DO”. Chovia
muito.
O pequeno avião onde foi embarcado o nosso tenente borregou duas vezes.
A terceira tentativa levantou vôo.
Seguiam na avioneta o piloto, o tenente Tomé
Pinto, na sua maca, e o cabo enfermeiro Leonel.
A segunda “DO” levantou vôo à
primeira tentativa.
E
dois aviões porquê?
Por
uma questão de segurança. Não nos podemos esquecer que estávamos em 1961 e que
as condições meteorológicas eram muito más. Se um dos aviões caísse o outro
balizaria a sua posição para que os seus ocupantes fossem socorridos. Chegaram
a Luanda ao anoitecer, depois de três horas de vôo. O cabo Leonel não se calou
durante todo o tempo e foi mantendo acordado o seu tenente. “Já se vêem as
luzes de Luanda”. O hospital estava perto. Chegaram. O tenente Tomé Pinto
lembra-se de ter pensado: “ estou safo”. Seguiu para uma sala de tratamentos
intensivos. Estava esgotado mas continuava atento. Tinham passados quase dois
dias… Só então se deixou adormecer. Tinha conseguido chegar até ali devido a
uma enorme vontade de viver. A primeira noite no hospital foi passada com
muitas dores.
Seguiram-se mais quatro ou cinco noites bem compridas…e mal dormidas.
Seguiram-se mais quatro ou cinco noites bem compridas…e mal dormidas.
Pensava na sua jovem mulher em Lisboa. Que
nada ainda sabia. Tinham casado em Janeiro de 1961. O jovem tenente tinha
embarcado para Angola em Maio. E estava agora no hospital em Novembro. Dez
meses de separação e de muitas angústias.
Quinze dias depois de dar entrada no hospital de
Luanda regista acentuadas melhoras e está em condições de ser evacuado para
Lisboa. Nessa altura já falava e dava algumas passadas.
Voa
de Luanda, deitado numa maca e… chega finalmente a Lisboa e ao Hospital Militar
Principal, ficando internado no pavilhão da Avenida Infante Santo.
O reencontro com a família foi muito emotivo.
A
recuperação fazia-se em bom ritmo e… deixaram-no ir passar o Natal desse ano
(1961) à sua aldeia natal. Maçores, perto de Torre de Moncorvo, em Trás-os-Montes.
Viajou
com a sua mulher de comboio de Lisboa até ao Pocinho. Quando chegou ao seu
destino tinha a “aldeia em peso” a recebê-los.
Não
mais o esquece.
Houve
depois uma missa extraordinariamente participada. Ainda hoje recorda o discurso
que o senhor Albano Mendes ,que era então uma figura grada da freguesia, fez em
sua honra. Também as palavras proferida por Maria do Céu, uma sua colega da
escola primária, o sensibilizaram bastante.
Depois da missa toda a gente o acompanhou a
casa dos seus pais. Regressou passados uns dias a Lisboa e ao hospital.
Melhorou
,e passados que foram cinco meses, está como “novo” e… volta a Angola. Pediu
para ir visitar os militares da sua companhia (a CÇac. 129), o que lhe foi
concedido. Quando chegou… foi recebido com entusiasmo pelos seus. Esteve dois
ou três dias com os seus homens. Ainda se ofereceu para ir a uma “operação” no
mato, mas não o deixaram ir. Recorda dessa breve passagem pela CCaç. 129 a
presença da mulher do Alferes Miliciano Domingos. Quando este saía para o mato
a “Mariazinha” sentava-se numa cadeira e aguardava horas e horas sem dizer uma
palavra. Era a imagem da angústia e do sofrimento.
Seguiu
então para Nova Lisboa, já então como capitão. Fez depois uma “escola de cabos”
com tropas nativas. Foi também o “oficial de operações” na zona até ao final da
sua comissão.
Na zona onde esteve até ao final da comissão
não havia “guerra”. Ia-se beber um café a Luanda (700Km) ou comer uma lagosta a
Lobito (400Km). Vivia-se bem e o ambiente era extraordinário. Acabou a sua
comissão em Junho de 1963. Regressou ao continente e foi colocado em Mafra.
Onde começou um novo capítulo da sua carreira. Foi nomeado director do curso
dos novos aspirantes da Academia Militar, a quem tentou passar a sua
experiência nos poucos meses em que esteve com eles. Em Janeiro de 1964 já
estava em Évora a preparar uma nova companhia. Que veio a ser a CCaç. 675 e que
,em Maio desse ano, rumou para a Guiné. Mas essa é outra história…
Depois
da comissão da Guiné volta novamente a Angola como Oficial do Estado Maior
(1972-74).
- “Africa é uma terra de feitiço e o africano é
generoso”.
E
hoje?
-
“Vivo na cidade. Mas não sou um citadino”.
Porque
é (será ate morrer) transmontano. E o transmontano sente-se bem em todo o
mundo.
Actualmente, com 76 anos de idade, anda a
plantar árvores em Maçores, sua terra natal. Já plantou 2500 oliveiras.
E o
cabo Leonel?
-
“Mora em Bucelas-Loures. Ainda há quatro anos me safou de outra. Tive uma
operação marcada a um joelho em mau estado e ele tratou-me. É massagista no
clube de Bucelas. Mas já foi massagista do Sporting Clube de Portugal e da
Selecção Nacional de Juniores.”
Faz
uma pausa e, lentamente, refere:
-“Devo-lhe
a vida”.
E a
sorrir repete: “Vocês aí a comer e o meu tenente a morrer... “
- “Só mais tarde soube desta frase do Leonel -
que nada me disse na altura em que a proferiu - por um oficial que estava na
messe de Negaje.»
Passaram
51 anos.
JERO
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