quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

M 334 - PONTES DO PASSADO...

PONTE PARA O REGRESSO”
As memórias fotográficas são várias e têm 40 e tal anos.
Mas...a "fotografia" foi tirada em finais de 1964 no Rio Cacheu- Guiné, numa povoação à beira rio chamada Binta. A viagem não tinha sido de recreio e o “Alexandre da Silva”, que tinha navegado de Bissau até aquele local – mais ou menos a oitenta quilómetros acima da foz do Cacheu - levava tropas e não turistas.

O navio era de carga e tinham sido precisas cerca de 17 horas de navegação para acostar ao pontão da fotografia, pomposamente apelidado de cais...


Dá para perceber pela fotografia que o rio era bastante largo frente a Binta, povoação com alguns grandes armazéns de telhados de zinco .


Para lá desta zona “urbana” haviam ainda 4 ou 5 habitações de pedra e cal de madeireiros e um perímetro delimitado por arame farpado “apelidado “ de quartel.Com uma forma mais menos rectangular.


Vivemos neste local – cerca de 170 militares da Companhia de Caçadores 675 – durante dois anos. Dois longos anos!...


Vezes sem conta nos sentámos nas tábuas deste pontão, habitualmente frequentado por pescadores indígenas, que remendavam as suas redes, enquanto fumavam cachimbo e mascavam “cola”.


Vezes sem conta olhávamos “para lá” do pontão ...sonhando com o regresso, curtindo saudades, relendo cartas dos familiares e das namoradas, chorando lágrimas furtivas, lambendo feridas do corpo e da alma, quando regressávamos das patrulhas das matas do Norte da Guiné.


Deste pontão descobrimos amanheceres cinzentos, carregados de neblina que anunciavam um novo dia a descontar na “conta-corrente” dos dois anos de comissão.


E ao fim da tarde - quando nos conseguíamos abstrair da “guerra” desse dia ou da que estava marcada para o dia seguinte – descobríamos o pôr do sol avermelhado de África , quente, sufocante, agressivo, misterioso, mas com um cheiro único, envolvente, pesado que nos esmagava os sentidos, entranhando-se na pele e na memória dos olfactos.


Havia dias em que este pontão fervilhava de agitação no desembarque de géneros de pequenos barcos a motor que subiam o rio até Farim, onde se situava a sede do Batalhão 490, cerca de 20 kms. mais acima. Devido à guerra o rio era uma via mais segura para as populações se deslocarem e as LDM (lanchas de desembarque das do tipo daquelas que se celebrizaram no desembarque da Normandia) partiam apinhadas dos  mandingas e fulas da região, que em cada viagem transportavam quase todos os seus haveres – galinhas, cabritos, máquinas de costura, bicicletas e crianças, muitas crianças.


De vez quando chegava um navio patrulha o que animava o nosso dia a dia. A” guerra” da Marinha sempre foi melhor do que a dos “caçadores” - leia-se “guerra do ar condicionado” , da cerveja fresca para os praças e de alguma garrafa de “whisky” para as patentes mais elevadas. Há que referir que a chegada da Marinha também resultava para nós ,"caçadores"na "mais valia" duma sessão de cinema com energia fornecida pelos geradores do navio.


Deste pontão arriscava-se de vez em quando uma viagem em piroga para apanhar uns peixes para melhorar o rancho ou, para alguns mais aventureiros, dar um “tirinho” nalgum crocodilo sonolento que estivesse a apanhar sol nas margens. Para trazer uma pele para uma mala ou para uns sapatos para a namorada tinha que ser com a “Mauser” porque as balas da” G3” não furavam a pele dos crocodilos .Quando havia crocodilo para esfolar havia também “chatisse” com os habitantes de Binta que eram protegidos pela tropa mas que não davam “baldas” no que respeita aos crocodilos do “seu” rio. Queres levar a pele para Lisboa pagas ....
Ali chegámos em meados de 1964 meninos, de vinte e poucos anos, miudos e dali partimos homens de traços vincados e almas marcadas pela dureza de uma guerra. Vimos este pontão pela última vez em Maio de 1966.


O simbolismo da sua imagem, desta fotografia com alma está “pendurada” na sala de estar da minha casa, em Alcobaça. A maioria das pessoas que me visita quase não dará por ela.


Para mim, no capital do meu património de recordações, ela diz muito. Sem palavras recorda-me os afectos, a minha juventude, a minha generosidade e o meu gosto pela fotografia. Apetecia-me dizer, para terminar, que continuo fotógrafo. Mas seria pretencioso . Para mim e mais 170 irmãos esta fotografia do pontão do Cacheu representa a magia de uma época .






Contrariando a opinião dos Mestres que defendem que “uma fotografia não tem que ter título”esta minha fotografia tem nome.


"Ponte para o regresso."



Pontes do passado ...na memória do presente ..até sempe!
JERO

1 comentário:

  1. Caro Amigo e Camarada. Gostei do que escreves-te,e muito principalmente COMO escreves-te. Alguém disse:"Numa boa página de prosa ouve-se a chuva cair!". Na página que tu escreves-te...sente-se a tua Alma! Um grande abraco.

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