sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

M - 444 QUANDO UMA CAPICUA "DÁ" UTOPIA...


Utopia

Feita a 4ª. classe, na escola primária da sua Nazaré natal, Álvaro Laborinho Lúcio passou a rumar por volta de 1952 a Alcobaça para continuar os seus estudos no Colégio do Dr.Cabrita.
Com 11 anos o Álvaro passou a apanhar a camioneta dos “Claras” da Nazaré para Torres Novas.
 E descia todos os dias de manhã em Alcobaça.
 Ia para as suas aulas e, findas estas, à tarde apanhava em Alcobaça, é bom de ver, a camioneta que vinha de Torres Novas para a Nazaré.
O que então para si, depois de uma rotina que se prolongou até ao 5º.ano, se tornou numa questão incontornável. Melhor dizendo numa utopia que acompanhou durante alguns anos da sua vida. 
A utopia chamava-se “Torres Novas”.
Que ao longo dos primeiros anos da sua adolescência nunca atingiu porque saía cedo demais…
Alcobaça era então o seu destino !
JERO

(Referência de Laborinho Lúcio, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, na situação de jubilado, na apresentação do seu livro “O Julgamento” na Biblioteca Municipal da Nazaré em 29 de Dezembro de 2012).


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

M - 443 - CROMOS DA VIDA


O TIBÚRCIO
À distância no tempo recordo um “homem feito” que dormia na rua e que fazia a sua higiene matinal numa “fonte” situada aos pés da estátua de São Bernardo…
Na vila o Tibúrcio era muito conhecido. Não por ser político ou jogador de futebol  mas ,por à sua maneira, estar sempre bem visível na rua...e por todo o lado!
Na aldeia onde nasceu poucos teriam o que precisavam e o caso dele não foi excepção. Pior do que isso, o Tibúrcio saltara para a vida sem as defesas suficientes e rapidamente se integrou nos desprotegidos da sorte. E deu tanto “nas vistas” que alguém, bem intencionado, o meteu num asilo de mendicidade.
 “Ajuda” que não resultou.
Como “ave de campo não quer capoeira”, logo ao segundo dia, o Tibúrcio fugiu para bem longe, só regressando alguns meses mais tarde, depois de lhe terem garantido que não teria de voltar para o que considerava pior do que a cadeia.
O que, diga-se em abono verdade, não era mentira nenhuma.
Pelo tempo fora, foi vivendo incertamente, amigo dos gatos e dos  cães, com os quais compartilhava escassos pães ou minguadas sopas que algumas almas generosas lhe  abonavam.
Trabalho ou ofício fixos nunca teve porque não aceitava cumprimento de horários .Já referimos que não era ave de capoeira…
Mas não era preguiçoso . 
Chegou mesmo a montar caixa de engraxador  junto a uma Farmácia da vila (a Farmácia Campeão) mas, por vezes, acontecia que um ou outro cliente saía com peúgas e sapatos engraxados por igual… E, vá lá saber-se porquê, esse bónus não agradava à generalidade das pessoas. Optou pois por fazer recados. 
Porque o Tibúrcio não mendigava, limitava-se a oferecer a sua força de trabalho.
Também não explorava ninguém, porque não fazia preço aos serviços que prestava, aceitando sempre, com um sorriso, a retribuição, em espécie ou dinheiro, que lhe fosse dada.
Quando a paga era boa, ala para o Beco do Grilo, onde numa tasca “à maneira” matava velhas sedes, até ficar um pouco zonzo. Depois, deambulava pelas ruas, fazendo confidências às paredes, quando não calhava arguir asperamente uma porta mais inchada de riquezas .
«Era habitual o Tibúrcio passar pelo meu local de trabalho para saber se eu precisava  de tabaco. Por vezes, encomendava-lhe um maço que me trazia de imediato, o troco sempre certo. A paga era um cigarro, quase sempre acompanhado duma moeda. Por vezes, em dias de maior generosidade, pedia-lhe que trouxesse um pacote e dava-lhe um dos maços. Com um sorriso, mas sem subserviência, com a consciência de quem recebia o justo pagamento do seu trabalho, agradecia e ia embora, sem lamúrias.
Numa das suas visitas que coincidiu com a véspera de Natal, encomendei-lhe um pacote de maços de SG  Gigante. Quando o Tibúrcio chegou, abri cuidadosamente o pacote,  tirei um maço, abri-o, separei dois cigarros, acendi um para mim e dei-lhe o outro, acendendo-lho também, enquanto lhe fazia sinal para que se sentasse um pouco.
Depois de algumas palavras sobre o tempo, o Natal e a vida, abri a carteira, tirei uma nota de cinquenta escudos e, com palavras de circunstância, que não recordo, entreguei-lhe a nota e o pacote com todos os restantes dezanove maços de tabaco.»
O Tibúrcio não contava com tamanha generosidade e terá sentido ali um pouquinho da amizade de que precisava para respirar. 
Então, começou a soluçar e, de imediato, chorou copiosamente, sem recear estragar o contentamento que o invadira.
« Depois, retomando a pouco e pouco a tranquilidade, durante uma hora diferente e boa, contou-me a longa história da sua vida, uma vida de gente habituada às pequenas coisas, humildes e silenciosas.»
Viveu ainda alguns anos.
«Nunca deixou de ser quem era mas a mim encheu-me de contentamento o convívio com ele, até que, finalmente, chegou o seu dia e descansou. »
Aquilo que perdemos nunca mais nos é devolvido.
« Quando perdi o Tibúrcio senti que também perdia aquele Natal.»
 À distância no tempo , já um pouco desvanecido na bruma da distância, não o esqueço . É só passar pela “fonte” situada aos pés da estátua de São Bernardo… e lá está ele!
JERO
(com a devida vénia ao meu amigo Timóteo de Matos, o homem dos 19 maços de SG Gigante, que me contou grande parte da História conVida do Tibúrcio)