sexta-feira, 10 de junho de 2011

M - 359 PASSADO SEMPRE PRESENTE

Sempre presente...o passado

 «Há dentro de nós um poço, no fundo dele é que estamos, porque está o que é mais nós, o que nos individualiza, a fonte do que nos enriquece no em que somos humanos».
Virgílio Ferreira, escritor (1916-1996).

No dia 5 de Novembro (de 1964) à noite, apareceu a C. Art. 732 que, a 5 km do local onde nos encontrávamos, sofrera duas fortíssimas emboscadas quase seguidas, cada qual a mais feroz, e que provocaram um morto e vários feridos.

Vinham de cabeça perdida... e o estômago a “dar horas”; oferecemos-lhes o nosso jantar e demos-lhes ânimo, para enfrentar outros dias difíceis que ainda iriam surgir durante a longa comissão. De manhã, pareciam outros!
Partiram para sul”.

“Testa de Ponte”/Belmiro Tavares/Alf. Mil. da C.Caç. 675 (Lisboa, Abril de 2011)

O texto alusivo a 5 de Novembro de 1964 passou-se no Norte da Guiné, junto a Farim, durante a guerra do Ultramar.
Estão passados quase 47 anos.
Parafraseando Virgílio de Ferreira há de facto dentro de nós um poço, meio cheio com memórias do passado que, por vezes, nos perturbam e chegam à superfície de rompante, obrigando-nos a lutar para afastar fantasmas que afinal, ao longo do tempo, nunca deixaram de nos acompanhar…
Sob as ordens do Alferes Belmiro Tavares eu estava lá e foi na qualidade de Furriel Enfermeiro que ajudei ,com outro militar da “675” ,a retirar de uma viatura o corpo do militar da C.Art. 732,envolto numa lona, que tinha sido ferido de morte poucas horas antes.
Os homens da “732” estavam a viver o seu primeiro dia no “mato” (leia-se “guerra a sério”) e estavam autenticamente em estado de choque.
Deu para perceber pouco depois que eram autênticos novatos(“maçaricos” na gíria militar) que não sabiam “armar” as suas “G-3”. Já tinham passado por duas emboscadas e não sabiam meter a bala na câmara das suas armas a cheirar a massa de quarteleiro!Só um 2º.Sargento do "quadro" tinha ripostado ao fogo inimigo com uma metralhadora pesada. Tinham tido um morto e só por milagre não tinham sofrido mais baixas.
Passados todos estes anos vim agora a saber ,pela consulta de um livro respeitante aos mortos em Campanha do Estado Maior do Exército (8º Volume – Tomo II, Guiné –Livro I, a pgs. 80), que o militar morto perto de Farim era um jovem soldado atirador nº. 107/64,de Selmes-Vidigueira, de nome João António Beijinho Sardinha. O registo do E.M.E.refere que está sepultado no Cemitério Municipal de Évora.
À distância no tempo recordo ainda com nitidez o desnorte dos militares da ”732”, onde vim a encontrar um amigo e camarada dos meus tempos do Hospital Militar de Lisboa: o Furriel Enfermeiro Albino, por alcunha o “Six”, que me contou com algum pormenor os maus bocados desse longo e penoso dia (*).
O medo dava-lhes às faces uma lividez impressionante e estavam esfomeados. A comida das nossas marmitas foi para eles um manjar dos deuses.
E depois transmitimos-lhes ânimo. Estávamos no “mato” há apenas 4 meses mas tínhamos já na pele umas dúzias de operações com muitas vitórias pessoais e colectivas. E éramos uma grande Família. Unidos como irmãos.
Tinham que superar aquele dia de infortúnio.
Afinal já Virgílio Ribeiro o tinha dito:
“Há dentro de nós um poço …A fonte do que nos enriquece no em que somos humanos”.
Partiram para Sul poucas horas depois.
Agradeceram-nos vezes sem conta.
Da “testa de ponte” de 19 de Outubro a 6 de Novembro de 1964 é o que de mais marcante me ficou.
O passado mais uma vez me invadiu o presente.

Vindo do Rio Cacheu,
frente a Farim,
 passando por Binta
até hoje,
 relembrando a escuridão da noite,
 o cacimbo da madrugada
que tornava ainda mais desconfortável
o descanso,
 nos “colchões” improvisados .
Sempre com os mosquitos por perto.
Picando,
sugando o nosso sangue,
no pescoço,
nas mãos,
na nuca,
nos tornozelos,
na cabeça,
na alma...

Quase 47 anos depois …
o passado sempre presente.


JERO

(*)O meu amigo "Six", que já era a abreviatura de "six to five o laringe"(já não me lembra porquê) era um notável "baldas". Alfacinha de gema tinha uma lábia que nunca mais acabava. Trabalhava nas "Páginas Amarelas" e já como Cabo-Miliciano passava a vida a "desenfiar-se" para ganhar umas massas no seu emprego da "vida civil". Eu respondia por ele nas formaturas para o rancho e não só. Um dia telefonou-me para a en- fermaria onde era suposto prestar serviço(a Dermato-Sifligrafia) para na formatura da noite responder por ele.O cabo-tefefonista do HMP pediu-lhe a identificação antes de me passar a chamada e o "Six", armado em bom ,disse ser Alferes Miliciano e ordenou ao Cabo para se limitar a fazer o que lhe mandavam.O Cabo ficou desconfiado e ouviu a chamada.O "Alferes" pedia a um Cabo Miliciano para responder por ele na chamada da noite!?  Resumindo: o Cabo "lateiro" telefonista ameaçou que ia participar a ocorrência e tivémos que lhe ir pedir rapidamente desculpa no dia seguinte para evitar males maiores. Está claro que o "Six" continuou a desenfiar-se sempre que podia com a "cobertura" do seu amigo Oliveira, que chefiava a Enfermaria e tinha que fazer o seu trabalho e de mais uns tantos Cabos-Milicianos, que sabiam que o seu "Chefe" temporário não iria participar deles.
Enfim, sacanagens dos "verdes anos".









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