terça-feira, 13 de julho de 2010

M 277 - SENTIMENTOS / PARTE DOIS

LAÇOS DE EX-COMBATENTES

1) Caro Jero:
Nada fazia prever que ontem nos voltássemos a encontrar. É o que se costuma dizer para estes lados: "é a roda da vida", eu corrijo, é o raio da vida.(1) Há quase uma dezena de anos que o vi pela última vez, terá sido no funeral da mãe, o facto de residir em Paris justifica-o. Antes disso a última recordação que tenho dele, será 30 Dezembro de 1964, ou pouco mais, ele foi a nossa casa levar a triste notícia da morte do irmão, todos choramos, foi uma dor muito grande. Ele que foi colega do meu irmão mais velho, ambos da mesma idade, mais uns quantos, alguns dos quais presentes ontem, comigo e com o Varinho (2)l á fazíamos as nossas "guerras" numa devesa, propriedade de um seu tio paterno. A maioria acabou por dar com os costados no Ultramar, apenas o Varinho pagou o tributo por todos.
Há 46 anos, Rebelo Mesquita, seu pai, dilacerado pela enorme perda, dizia e repetia: " ... saiu-me a lotaria negra", hoje a sua filha Teresa, no Jornal de Famalicão que dirige, escreve: " A GADANHA DA MORTE PASSOU PELO JORNAL ...".
Gostei de conhecer o Tavares, mais tarde ou mais cedo isso iria acontecer, assim como presumo que acontecerá, conhecer os outros Alferes da 675.
Um abraço, faço votos que o próximo encontro seja noutro ambiente,
Brandão
(1)-O António Brandão é natural de Vila Nova de Famalicão.
(2) Diminutivo com que era carinhosamente tratado o Álvaro Vilhena Mesquita

2) Amigo Jero:
Ao contrário de ti(3), não deixei lá ninguém, os 164 (?) que fomos, voltamos mas, conforme os dias se iam esgotando, “ecos “ sob as mais variadíssimas formas, iam-me chegando com a triste novidade de que os meus camaradas de armas iam partindo.
Há dois que particularmente me tocaram, um, Cabo-Verdiano, Alferes, que em Mafra como cadete, ainda sem o conhecer, se destacava.
Era a sua cor, acompanhado com o único amigo que parecia ter, lá, no outro lado da parada, nos intervalos da instrução, conversavam sobre coisas que nós continentais, se calhar, dificilmente perceberíamos. Depois de prontos(4), depois de termos já dado uma recruta, vim a conhecê-lo melhor, o seu carácter, a sua camaradagem, o seu sentido de povo, enfim um Militar com letra diferente. Nesta altura, estávamos em Lamego, o seu conterrâneo, o parelha natural com quem privava em Mafra, era agora o seu parelha de curso. Eu, já o não via do outro lado de uma grade parada, pertencia agora à minha “turma” de instrução, nos tais intervalos, tive oportunidade de o conhecer melhor. Um dia, nos dias primeiros de 1969, estava eu na messe a ouvir rádio em Angola quando, vindo do outro lado do continente, o “eco” chegava: “ … o ministério do não sei quantos informa que o Alferes Miliciano Daniel Rui Almeida Fonseca faleceu em combate em Moçambique”. Que murro no peito, que chapada … O meu camarada Fonseca, o Homem que ao referir-se aos anónimos Cabo-Verdianos dizia: “ … o meu povo …”. O Fonseca acabava de partir com mais seis camaradas, num ataque ao aquartelamento, de um quartel ainda em construção, que não existia.
Um outro murro levaria eu, 40 anos depois, desta vez de uma forma mais sofisticada, mais moderna, com um “eco” ajudado pelas novas tecnologias. Foi em 2008, em Maio, procurava na net, com os poucos indícios que tinha, os camaradas que tive em Lamego. Talvez fossem umas três da manhã, não me recordo o dia mas encontra-se registado bem como as emoções que na altura me assolaram. Ao meter o nome Rogério Nunes de Carvalho, sem mais, sou remetido para a página dos Mortos em Combate no concelho da Guarda, entre aquelas dezenas de nomes, lá estava ele, Alf ml Art Oesp 00177066/ Ral 3/ G/ cart 2338/cbt/ 17.04.1968 † Freg nat (Pêga). Chorei, senti-me incomodado, revoltado. De facto, nem sequer me recordava dele, o pouco tempo que permanecemos juntos não deu para termos um momento daqueles que se recordam para sempre, não houve uma fotografia que testemunhasse termos andado juntos, apenas uma fotocomposição dos 68/70 que fomos, dizia discretamente que tínhamos andado lá, tínhamos subido a Serra das Meadas lado a lado. Podem perguntar-me “porquê, o murro” porquê teres chorado? Chorei porque um camarada que conheci, não sobreviveu, porque mais um daqueles anónimos que se encontram junto ao Forte do Bom Sucesso, deixou de o ser, porque a vida mo escondeu durante quatro décadas não permitindo a recordação de imagens, então ainda recentes, fossem refrescadas, que o luto a um camarada tivesse sido melhor desempenhado. Sobre ele, Torcato Mendonça, recorda o seu último encontro, no post p2527 do L.G. http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2008/02/guyin-6374-p2527-estrias-de-mansambo.html
Ultimamente, como penso que já te disse, tenho estado presente no 10 de Junho em Belém, tive sempre muita vontade de lá ir, o estar a 300 e tal km mais outros tantos para a volta, mais uma série de condicionantes, fez-me protelar o momento. Desde 2006 não falto, espero não faltar nos próximos anos, é o dia dos nossos mortos, é o dia dos meus mortos. Olho, uma a uma aquelas lajes que perpetuam os meus amigos, e todos os camaradas do meu tempo e de outros tempos, passados e seguintes, deram o seu melhor, enlutaram as suas famílias, fizeram os seus filhos órfãos, as suas namoradas, noivas e mulheres, viúvas na flor da idade. São 10, dois Furrieis, oito Alferes, ao olhar essas lajes tento refrescar o que ainda resta na minha memória cada vez mais ténue, há sempre uma lágrima, outra e outra, que escorrega há sempre um momento que se visiona. Deixo-lhes sempre uma rosa, não resolve nada mas deixa-me muito feliz por voltar a estar com eles.
Um grande abraço,
Brandão

Ps-Duas fotografias, 10 Junho 2010, anexas, o Varinho e todos os outros, as minhas rosas vs os meus mortos, com uma lágrima …
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(3) A minha Companhia – a C.Caç. 675 – teve 3 mortos em combate.
(4)- Termo que na gíria militar se aplica a quem já cumpriu a recruta e fez a especialidade.
JERO


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