Uma entrevista com o Professor Gérard Leroux
A entrevista que reproduzimos seguidamente foi publicada em O ALCOA
em 24 de Maio de 2007.
Passaram um pouco mais de 3 anos e a sua importância é tão actual
que resolvemos incluí-la no nosso blog.
Para uma leitura mais fácil fizémos alguns "cortes!
-Quem é o nosso entrevistado?O Prof. Gérard Leroux nasceu em Roubaix (França) em 13 de Outubro de 1946, tendo portanto actualmente 60 anos de idade.
Formou-se em Filosofia, Teologia e Línguas Antigas na Universidade de Estrasburgo, tendo sido Assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Dedica-se ao estudo da Ordem de Cister em Portugal desde o início dos anos 80
É considerado um dos melhores especialistas da Ordem de Cister em Portugal, tendo já publicado várias dezenas de trabalhos eruditos e proferido inúmeras conferências nas mais diversas instituições.
No que respeita a Alcobaça tem actualmente dois trabalhos em preparação:
- Uma História do Real Colégio de Nossa Senhora da Conceição de Alcobaça, fundação cisterciense do século XVII; e
- Um Catálogo do Arquivo Histórico da Misericórdia de Alcobaça, instituição que o contratou para esse efeito em Junho de 2006.
Senhor Professor, em que fase está o trabalho da recuperação do Arquivo Histórico da Misericórdia de Alcobaça ?
Em bom caminho. A catalogação dos livros já está muito adiantada. Alguns, até, que se encontravam em mau estado de conservação, já foram restaurados, sob a minha orientação, por um encadernador de Alcobaça, o Sr. Eusébio da Silva, que trabalha muito bem, com métodos e materiais tradicionais.
Para termos uma ideia mais precisa do conteúdo deste Arquivo, importava-se de nos dizer com mais particularidade em que consiste ?
O fundo do Arquivo reflete a estrutura, as funções e as actividades da Misericórdia ao longo de perto de 500 anos de existência. Há, portanto, toda a documentação relativa à constituição e regulamentação da instituição, às actividades dos órgãos governativos (Assembleia Geral, Mesa Administrativa), à gestão dos recursos financeiros, patrimoniais e humanos, e ainda às actividades da Santa Casa no âmbito da assistência social e no domínio da saúde, exercidas através do seu hospital até ao ano de 1976. São, como já foi referido em artigo anterior, centenas de livros e cadernos, e alguns milhares de documentos avulsos… Destacam-se compromissos, livros de eleições, acórdãos e actas da Mesa, copiadores de correspondência expedida, livros de receita e despesa, tombos de títulos e escrituras, etc. E no que diz respeito à gestão hospitalar, registos do movimento dos doentes, receituários médicos e cirúrgicos, carreiras de passageiros, documentação referente ao movimento de doentes militares (por exemplo os feridos nos violentos combates da Nazaré, durante a primeira invasão francesa, em Julho de 1808).
A este acervo, próprio da Misericórdia de Alcobaça, há que acrescentar os das misericórdias que lhe foram unidas compulsivamente, por decisão do Marquês de Pombal, em 1775 : Alvorninha, Cela, Cós, Évora, Maiorga, Santa Catarina e Turquel — uma centena de livros ao todo, não contando, aí também, os documentos avulsos, alguns dos quais remontam ao século XV, antes, portanto, da instituição das misericórdias…
Quando é que pensa chegar a estes documentos avulsos ?
Não sei ainda. Tudo isto é muito moroso. Há normas a respeitar, princípios arquivísticos definidos a nível nacional e internacional. Cada peça é objecto de uma análise detalhada ; faz-se uma ficha. Não é coisa para brincar.
Sr. Professor, vejo, na sua mesa de trabalho, livros encadernados com pergaminhos que parecem muito antigos… Fico surpreendido, porque, desde sempre, ouvi falar no saque de 1834, do « mata-frade », dos documentos que, nessa época de balbúrdia, sairam do Mosteiro e teriam sido utilizados em fins menos dignificantes… Será que alguns destes pergaminhos serviram para encadernar livros da Misericórdia ?
Não, tudo leva a crer que estes livros foram encadernados antes da expulsão dos monges, na oficina de encadernação do Mosteiro. De resto, há livros assim encadernados em todas as bibliotecas e arquivos do País. Na Biblioteca de Alcobaça, no Arquivo de Leiria, na Biblioteca Nacional, na Torre do Tombo, em toda parte. Era prática corrente…
Os monges não davam valor a estes pergaminhos ?
Davam… Ou não davam… Mas o que é que quer ?… Os livros, mesmo os livros escritos em pergaminho, acabam por estragar-se com o tempo. É particularmente o caso dos livros de coro, muito manuseados durante dezenas de anos. Sempre chegava uma hora em que os livros sujos ou rotos, indignos de continuar a servir, eram postos de lado e finalmente inutilizados. Por outro lado, em todos os escritórios monásticos havia um stock de pergaminhos, de folhas ensaiadas, de obras começadas e abandonadas, que não serviam para nada, ou de escrituras públicas desactualizadas. Os encadernadores recuperavam este material para fazer capas… Como os antiquários de hoje fazem abat-jour !…
Entre estes pergaminhos alguns devem ter mais valor, ou mais interesse, do que outros ?
Sem dúvida. Aliás, o Padre Avelino de Jesus da Costa, que foi um grande mestre de diplomática da Universidade de Coimbra, chamava a atenção para o interesse destes « pergaminhos de reemprego », de que fez um inventário sistemático em todas as bibliotecas do País. Não passou, no entanto, por Alcobaça, por ignorar, certamente, a existência deste arquivo ou por lhe ser, na altura, inacessível. Mas eu próprio fiz algumas descobertas interessantes, que conto em breve divulgar…
Sendo as misericordias de protecção real, deve haver, na Misericórdia de Alcobaça, documentos assinados pelos nossos reis.
Há, efectivamente, no Arquivo Histórico da Misericórdia de Alcobaça, documentos assinados por D. Catarina, viúva de D. João III, por D. Sebastião, pelo Cardeal D. Henrique, por Filipe III de Espanha, por D. João IV, etc.
Sr. Professor, peço-lhe um esclarecimento que julgo importante para quem nos lê. Depois de inventariado e organizado, o Arquivo será acessível ao público ?
Julgo que sim, mas esta decisão não depende de mim, porque implica a instalação de uma estrutura de apoio, com funcionamento regular, que, segundo julgo saber, não foi ainda definida. Mas é natural que sim. Não basta conservar e catalogar, é preciso abrir um dia este arquivo aos estudiosos. Para já, o meu objectivo, e a missão que me foi confiada, é elaborar um catálogo geral que sirva de instrumento de pesquisa para futuros investigadores. O resto não me pertence.
Estas irmandades que referiu, essas misericórdias, têm a ver com o conceito actual de misericórdia ? É que para muita gente de Alcobaça, a « Misericórdia » está associada ao Hospital de Alcobaça. É correcta essa associação ?
Sim, em parte. O Hospital de Alcobaça, como sabe, já não é da Misericórdia, mas é a continuação, de algum modo, do hospital fundado pela Misericórdia, numa escala ainda muito modesta, no início do século XVII, na actual Rua do Castelo, e que se transportou mais tarde, em finais do século XIX, para o Campo da Roda. Aquele hospital (o da Rua do Castelo) era, por sua vez, herdeiro de um hospício anterior — anterior à fundação da Misericórdia — e que dependia de uma irmandade do Espírito Santo. No local onde se ergue a actual igreja da Misericórdia existiu, até ao início do século XVI, uma ermida dedicada ao Espírito Santo, onde se dava assistência espiritual a quem passava pelo hospício construído ao lado, como acontecia também, por exemplo, em Aljubarrota ou na Maiorga, e noutras vilas dos Coutos.
Portanto, os hospícios não tinham uma função apenas, digamos, sanitária ?
Sanitária no sentido lato : saúde do corpo e da alma. Para os antigos, estas duas realidades (o corpo e a alma) andavam sempre ligadas. Mas os hospícios eram também albergues onde os viajantes, os peregrinos podiam pernoitar e ser assistidos e curados em caso de necessidade. Viajava-se muito, na Idade Média… Peregrinava-se muito…
E as populações locais, eram também atendidas ?
Claro. E não só os doentes como todos os necessitados : por exemplo, os presos, aqui, no castelo, a quem se levava comida ; ou os chamados « pobres envergonhados », pessoas desamparadas que, por uma razão ou outra, caíam na miséria…
Com a inevitável distância, pode-se considerar as misericórdias um serviço nacional de saúde, de utentes ?
Nacional, não, embora existisse solidariedade entre as misericórdias ; mas não existia estrutura centralizada, não havia ainda ministério da Saúde ! Agora, local, certamente. De resto, é o desenvolvimento das povoações que pede, que exige que se passe do simples hospício para uma instituição exclusivamente centrada no atendimento médico das populações.
No caso de Alcobaça, a Misericórdia tinha que dar contas ao Mosteiro ?
De modo algum, e isto tem que ser realçado. Desde o início — a primeira misericórdia, a de Lisboa, foi fundada em 1495 —, as misericórdias são instituições perfeitamente autónomas, que se regem pelos seus próprios estatutos, o chamado « Compromisso ». Estão sob protecção do rei (ou da rainha), a quem podem a todo o momento recorrer. Elegem os seus corpos dirigentes livremente, sem qualquer intromissão de fora. Congregam por cooptação, para fins caritativos, o que se pode considerar a elite da população local, escolhida entre a aristocracia (os « irmãos nobres » ; há nobres a viver em todas as vilas dos Coutos), e os profissionais (os « irmãos mecânicos » : artesões, comerciantes, camponeses abastecidos, etc.). Ao Mosteiro, a Misericórdia paga uma renda anual simbólica (dois alqueires e meio de trigo e duas galinhas), pelo terreno que ocupa e de que não é proprietária, e compra à sua botica, com desconto, os medicamentos que distribui. A isso se limita, o relacionamento da Misericórdia com o Mosteiro.
São, portanto, duas entidades independentes.
Completamente. Há no entanto um certo relacionamento por virtude do culto, das procissões, mas que — insisto — exclui toda a dependência… Como sabe, entre as quatorze obras de misericórdia, sete são espirituais, e, entre estas, uma, muito importante, é a de « ensinar os que não sabem » ; trata-se, obviamente, do ensino da doutrina cristã. Daí que todos os anos, por altura da Quaresma, a Misericórdia, muito embora tivesse os seus próprios capelães, costumava pedir a padres de fora — pagando-lhes uma esmola — para virem pregar na sua igreja. Estas pregações eram sempre muito concorridas. Por várias razões : constituíam um acto de piedade, e a piedade do povo, naquele tempo, era fervorosa ; mas constituíam também uma agradável diversão em relação ao dia-a-dia ; viam-se figuras novas, algumas delas, por vezes, muito conceituadas. Além disso, os portugueses, como todos os povos de cultura latina, sempre foram muito sensíveis ao talento oratório… E havia, de facto, grandes pregadores. Estou a pensar em Frei António das Chagas, franciscano, antigo oficial de infantaria, que tinha enorme fama como pregador, sempre a missionar aqui e acolá… De modo que juntava-se assim o proveitoso (em termos espirituais) e o agradável…
E de onde vinham estes pregadores ?
Muitas vezes do próprio Mosteiro, e sempre a convite da Mesa e do Provedor ; mas podiam vir do Convento da Madalena, em Évora de Alcobaça (franciscanos), ou do Convento da Batalha (dominicanos), ou do Convento do Bom Jesus de Porto de Mós (agostinhos)… Não havia obrigatoriedade ou exclusividade.
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Para nós, estes monges como Frei Fortunato são coisa do passado…
Para mim, não, e nunca foram. Descobri o Padre Cocheril tardiamente, mas conheci monges cistercienses desde a minha tenra infância. A primeira vez, foi pela mão do meu pai, que tinha um amigo religioso na Abadia de Mont-des-Cats, no norte da França. Naquele tempo, nos anos 50, antes do Concílio de Vaticano II, os monges em França ainda viviam como se vivia aqui em Alcobaça há duzentos anos atrás : cabeça rapada, grandes barbas (os conversos), mesmos usos, mesmo hábito, mesma liturgia… Para os alcobacenses de hoje, o monge é um ser do passado, uma figura quase mitológica, em torno da qual a imaginação pode fantasiar ou, até, disparatar conforme a ideologia de cada um ; mas, para mim, nunca foi assim. Até porque sempre tive muitos amigos monges (beneditinos, cistercienses, cartuxos), que, no fundo, não eram, e não são, estou convencido disso, muito diferentes daqueles que conviviam em Claraval com São Bernardo… Era tão bom vê-los de volta a Alcobaça ! Porquê é que não se estuda esta hipótese ? O Mosteiro está vazio…
...
Muito mais haveria para dizer mas… foi o próprio Professor Leroux a refrear um pouco o nosso entusiasmo pois… há ainda muito que fazer.
Reconhecemos, obviamente, que… o tempo é ainda de trabalho, mas foi nossa principal intenção dar a conhecer o que se está a fazer pela recuperação do Arquivo Histórico da Misericórdia de Alcobaça, realçando mais uma vez o que é (e o que foi…) preciso para salvaguardar este valioso Património que, repetimos, chegou aos nossos dias (quase) intacto graças à dedicação de alguns dedicados alcobacenses.
E… são testemunhos de mais de 500 anos da nossa história!
JERO